Em confinamento, muitos de nós se sentiram inúteis, outros altamente motivados para mostrar a todos que poderiam fazer e ser tudo dentro das quatro paredes de casa, outros tantos, continuaram a ver a vida passar, em casa, ou fora dela, tudo se remete a um mesmo compasso de espera, tempo que se gasta e não volta mais. Mas sobre isso, aqui, já muito foi escrito e observado.
E há aqueles que como eu, se desdobram naquilo que não o são também, mostrando que os lemas para 2020 até se podem concretizar de outras formas, sob as formas de outras pessoas. "A sorte protege os audazes" também pode ser usada na gíria como uma "grande lata" ou no português do Brasil, uma grande "cara de pau". Foi assim (e por causa do meu até agora único mês pago na Netflix) que cheguei ao contacto com Mel Lisboa, atriz brasileira da nova geração (ou, da minha geração) mais conhecida pela interpretação em Presença de Anita, vários anos passados. Aqui, tudo começou com a série Coisa mais Linda, no qual Mel é uma das 4 protagonistas principais, cavaleiras do Apocalipse, mulheres dos anos 60 num Brasil que se formava a ser o que é hoje, com as mesmas profundas raízes e questões sobre classes sociais, ricos e pobres, brancos e negros, mas, principalmente, com a mesma pergunta sobre o lugar da mulher na sociedade tipicamente masculinizada. E aí, completamente fascinada pela primeira temporada que tinha estreado já em Março de 2019 (!!!) na plataforma digital e esperando (agora em Junho) a segunda, decidi que tinha de tentar chegar ao contacto com aquela personagem/actriz que mais me tinha tocado, a decidida Tereza, que calhou ser a de Mel Lisboa, claro!
Mensagem enviada por Instagram, sabia que a hipótese de contacto seria para lá de nula - se nem os portugueses muitas vezes respondem, quanto mais os internacionais, e foi precisamente nesse ponto que me enganei! De uma simpatia e disponibilidade incríveis, tive (junto da editora da Revista Rua, que alinha nestas minhas loucuras) a oportunidade de enviar questões para o outro lado do Atlântico, termos a autorização de
Jorge Bispo em usar as suas fotos, e assim publicar a entrevista que se segue e que pode ser vista também aqui:
Mel Lisboa na Revista Rua.
(Além de falarmos necessariamente da série, a conversa e o contexto atual, levaram-nos também para um campo mais político, uma vez que Mel é igualmente conhecida pelo seu imparável ativismo cultural e social, batendo-se contra o corrente governo de Balsonaro. Entre o momento de envio das questões e o reenvio das respostas, houve ainda o "acontecimento" Regina Duarte na entrevista à CNN Brasil, que tanto envergonhou parte do país tropical como o lado de cá do oceano. Também esse momento foi oportunamente comentado).
Como será óbvio a nossa primeira questão tem a ver com esta situação de isolamento social causada pelo Covid-19. Como sentes que esta pandemia irá mudar a vida das pessoas?
Acho que a pandemia está, aos poucos, mudando profundamente as pessoas. Diante da situação extrema e sem precedentes, estamos nos vendo obrigados a rever uma série de conceitos e de valores. Espero realmente que esta tragédia sirva para que saiamos dela melhores do que éramos antes; mais solidários, mais conscientes da coletividade.
Pensas que poderá ser mais fácil com a evolução dos factos, haver uma maior consciencialização na sociedade brasileira ou mesmo na classe política, pela relevância e importância em relação à doença?
Honestamente, eu espero que sim. Mas infelizmente, diante da negação da população, da ignorância dos factos e da postura absurdamente irresponsável do nosso presidente, talvez isso só se dê individualmente, quando a morte bater na porta de cada um.
Falando sobre sociedade, como vês hoje em dia a importância dada aos direitos humanos e direitos da mulher?
Acho que os direitos humanos, os direitos das mulheres são fundamentais, hoje e sempre. Infelizmente, porém, a carta não é uma lei universal e poucas são as pessoas no mundo que a respeitam plenamente. Acho que seria fundamental que os direitos humanos fossem estudados de forma mais profunda nas escolas para que todos conhecessem os seus direitos e os direitos do próximo. O mundo, assim, seria um lugar mais agradável de se viver.
“Uma das coisas que mais impressiona em Coisa Mais Linda é a atualidade dos seus assuntos. Perceber que se passaram 60 anos e a situação da mulher do Brasil não mudou tanto assim é chocante.”
A série Coisa Mais Linda tornou-se num fenómeno tanto no Brasil como também aqui em Portugal. É claramente um sinal da importância do Feminismo e Feminino ou acreditas que haja outra razão por detrás do sucesso?
Acho que o sucesso de uma série ou de um filme é fruto de uma junção de factores; muitos elementos que agradam em uma só obra. O assunto é importante, definitivamente, mas se não vier acompanhado de um bom roteiro, uma boa direção, direção de arte, figurino, fotografia, trilha, interpretações, pode não funcionar. Na minha opinião, Coisa Mais Linda fez sucesso pois conseguiu unir com qualidade muitos desses elementos.
Todas as principais personagens, Maria Luísa, Ligia, Adélia e Thereza, têm histórias de vida bastante distintas entre si. Contudo, todas têm personalidades fortes. Thereza é talvez a mais emancipada das quatro. Viajada, culta… Muitas espectadoras se identificam com ela. Achas que a tua Thereza pode ter “roubado” a cena?
Thereza é, sem dúvida, a mais emancipada das quatro. Uma mulher independente, consciente da problemática do machismo no campo coletivo, inteligente, culta, sexualmente livre e segura de si mesma. Ou seja, uma mulher que muitas pessoas gostariam de ser. Por esse motivo, muitos espectadores acabaram se identificando com a Thereza, admirando-a. Mas cada personagem tem ali uma função narrativa muito importante e ficam mais fortes na presença umas das outras.
Feitas as devidas comparações entre o Brasil dos anos 50/60 e o país hoje, não achas que ainda há pontos que se cruzam, nomeadamente a questão do amor interracial, diferenças dos estratos sociais, hipocrisia nas classes de topo (relembrando a cena em que Malu e Ligia são “convidadas” a sair do country club?)
Uma das coisas que mais impressiona em Coisa Mais Linda é a atualidade dos seus assuntos. Perceber que se passaram 60 anos e a situação da mulher do Brasil não mudou tanto assim é chocante.
“Aqui, Cultura é considerado artigo de luxo. Infelizmente, não há a compreensão de que a Cultura é aliada fundamental da educação. Sem educação e cultura, não há desenvolvimento efetivo.”
Há poucos dias mencionaste numa entrevista que a principal causa do machismo/assédio era já algo intrínseco na cultura, que era um aspeto quase cultural. Mas não depende também da educação entre gerações mais velhas e mais jovens?
Sem dúvida. Acredito que a educação é fundamental para alcançarmos alguma mudança. Os mais velhos têm de mudar o seu comportamento para que a situação se normalize e passe a ser o padrão. Desta maneira, os mais jovens cresceriam num mundo cada vez mais equivalente e isso seria a norma, não a exceção.
E a Cultura/Arte? Em que situação está o Brasil neste momento? Desde há vários meses que se tinha verificado cortes e alguma censura em atividades e espaços culturais em que várias peças foram mesmo canceladas. Com esta nova crise económica que já se sente e com a nova Ministra da Cultura, também atriz, mas apoiante incondicional de Bolsonaro, como vês o futuro da tua classe profissional?
No Brasil, a Cultura está hoje talvez no pior momento da sua história. Artistas estão sendo perseguidos, ofendidos covardemente. Aqui, Cultura é considerado artigo de luxo. Infelizmente, não há a compreensão de que a Cultura é aliada fundamental da educação. Sem educação e cultura, não há desenvolvimento efetivo. Nos últimos dias, ainda tivemos um espetáculo de horrores protagonizado pela nossa Secretária de Cultura, Regina Duarte, que relativizou a ditadura, foi conivente com a tortura, debochou escrachadamente das pessoas que tiveram entes queridos mortos neste período, mostrando assim, de forma desavergonhada, a cretinice e a sordidez que o nosso governo atual representa.
Tens receio do futuro do Brasil? Consideras que há problemas sérios que não estão a ser valorizados e deviam?
Tenho, sim, muito receio. Quero me manter positiva, lembrando que na História, momentos como este que estamos passando vêm e vão. “Isto também vai passar”, é o que tenho dito para mim mesma, no afã de acreditar nas minhas próprias palavras.
Por último, numa palavra de esperança: Mel, qual é para ti uma das Coisas mais Lindas do Brasil? E do nosso Mundo?
Uma das coisas mais lindas no Brasil é a nossa cultura, o que nos diferencia e nos faz únicos. É também a nossa alegria, nossos ritmos, nossas cores tão diversas. Nossa riquíssima natureza; a floresta, os mares e montanhas, os animais. O que há de belo no mundo é também o que o faz singular. Cada região, cada som, cheiro, cada povo, cada flora e fauna. O ar que respiramos.