March 2020 - Cláudia Paiva Silva

Sunday, March 29, 2020

Hora de Verão
March 29, 20200 Comments
E assim foi. Na madrugada passada, entre uma hora e outra, acertaram-se os relógios e dizem os peritos que estamos no horário de verão. Seria idílico não fosse a ironia de os dias tornarem-se maiores para agudizar ainda mais as gentes que começam a acusar cansaço de um confinamento forçado e sem quaisquer perspectivas de término. E se há dias que parecem mais fáceis e rápidos, outros há em que não se encontra uma única vontade extra de ânimo, uma inspiração ao trabalho que se possa fazer por casa, nem uma fotografia, nem um livro, apenas palavras, ideias desconexas num cérebro à ruptura por excesso de informação, pensando no tempo que se perdeu antes, "antes", com outras coisas que afinal, nada parecem interessar. Agora, para cúmulo, ainda temos mais uma hora diurna, arrastando a luminosidade que, no início do ano, queria tanto que chegasse. Pensei imensas vezes que seriam Abril e Maio os meses para fotografar, pensei nas árvores que já estivessem em flor, os jacarandás da cidade, os cheiros e o céu a ficar cada vez mais azul à medida que a temperatura começasse a subir. Seriam os meses que iriam iluminar tudo, e que tornariam o ano ainda maior na promessa de grandeza que trazia. Na promessa apenas. 
Continua em mim o pêndulo entre o espanto e abalo, e a realidade consumada, aquilo que às vezes acho que é simplesmente mentira e que daqui a pouco irá passar, e a certeza que afinal irá durar muito mais tempo do que aquele que todos julgávamos. Uma guerra de silêncio, de afastamento. E agora também uma guerra contra aquilo que mais amava. A liberdade dos dias compridos, esticando-se para lá da noite, com vontade para aquele passeio mais tardio, um copo de vinho e um jantar, mesmo que não fosse esta a ordem. E ver o mar. 
De tudo, o que esta hora de verão me relembra num martelar constante, é que o mar, mesmo aqui à minha porta, me é negado numa inacessibilidade cáustica. Se não tenho nada "lá a fazer" o acesso é-me negado pela auto-prudência de quem teme a possível doença. Só que o mar em mim sempre foi cura.
O "tudo irá regressar ao normal" não me encherá a alma por estes tempos, nem tão pouco o passar das horas, agora num vagar mais comprido e estival. Os dias ainda não estão quentes, mas em breve irão ficar. Terão certamente de ficar. E a hora de Verão continuará a ser celebrada como se nada se passasse no Mundo. E na verdade, ao certo, será que o que se passa não é apenas insatisfação. Continuo, continuamos a pensar em liberdade quando claramente esta não nos é actualmente destinada. Deixemos então o planeta fazer o seu pousio entre as estações do ano, num calendário descompassado ao do ritmo humano, estabelecendo o lugar de cada coisa numa escala hierárquica que nos é ainda desconhecida. Seremos todos meros observadores desta vez, sem qualquer tipo de estrago propositado. O assombro, esse, irá certamente continuar. 

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Thursday, March 26, 2020

Diferentes formas de vida
March 26, 20200 Comments

Talvez seja altura de parar com a poesia.
Depois do choque inicial, da rapidez com que tudo aconteceu, quando começa a haver excesso de informação horário (às vezes minuto a minuto) e para lá do romantismo que podemos ver inicialmente em tudo, desde os sinais do universo, às mais nobres profissões que estão lá fora para que nós fiquemos cá dentro, há que perceber uma única coisa: o tempo pode ter parado sim, mas as nossas vidas nem tanto.
Em poucos dias algumas empresas e muitas pessoas tiveram de se adaptar rapidamente a uma nova realidade e a uma diferente forma de estar e viver:  tele-trabalho, aulas via internet, prestar atenção e ajudar filhos e família quase 24 horas por dia, exercitar os métodos de compras online (perdendo todo o receio que antes havia para o fazer), exercício físico em casa, tudo mudou para grande parte da população. Os conceitos de proximidade física com o outro alteraram-se à mesma velocidade com o que os conceitos de proximidade familiar se estreitam. Nunca em tantas décadas houve tanta gente a viver debaixo do mesmo tecto, tal como nunca em tantos anos pais estiveram tão próximos dos filhos - da mesma forma que nem nunca avós e netos tiveram de estar separados ou pessoas tiveram de ficar totalmente sozinhas e isoladas. A ordem natural das coisas como estávamos habituados mudou e as suas consequências só poderão estar visíveis talvez a médio ou longo prazo.
Posto isto, de que forma o isolamento quase obrigatório, a quarentena (o esperar que possam surgir quaisquer sintomas de doença), o estar e ficar literalmente em casa mudou a nossa real forma de ser e de estar na vida?
Estranhamente ou não, para aqueles que faziam do seu espaço mais íntimo local de trabalho, esta situação parece não ser confortável - a clausura habitual poderia ser pautada com saídas, reuniões pontuais com colegas, jantares com amigos, e sim, um ritmo de trabalho e produtividade dentro dos padrões normais. Agora, a "obrigação" torna-se um peso e a desconcentração parece imperar.
Já para aqueles, como eu, habituados à rotina diária de trabalhar num escritório (ou outro espaço fora de casa), a questão coloca-se de outra maneira. Poderá haver maior tentação para a distracção, mas acho que é exactamente isso que nos leva a trabalhar por vezes muito mais - um esforço extra que, se antes era não era visível pelo número de idas às copas ao longo do dia, agora nem sequer nos passa pela cabeça. No meu exemplo, estar na minha zona de conforto, com toda a "minha tralha" em redor faz-me pensar que quanto mais cedo me despachar (mesmo que acabe por ganhar mais vontade para trabalhar e ver mais calmamente coisas que se calhar estando no escritório não veria) mais depressa vou ler aquele livro adiado, ou fazer aquela pintura que tanto ando a imaginar. Não acredito que haja menos responsabilidade tal como não acredito que os trabalhadores não respondam às solicitações que lhes possam ser feitas estando em casa - sinto-o até como uma forma de auto-defesa - há que mostrar aos nossos colegas e chefias que lá por estarmos em casa não implica que estejamos sentados no sofá a ver filmes ou séries. Aliás, parece que na verdade é algo que temos de provar não só a quem de direito mas também a toda uma sociedade que de repente surge de peito cheio garantido que somos uns preguiçosos, medricas e que por nossa causa a economia nacional parou - a esses apenas lhes digo que já todos percebemos quais as vossas prioridades. Principalmente quando são vocês que estão sentados nas vossas cadeiras de couro bafiento, enfiados em escritórios que se devem localizar certamente numa sala de uma casa onde também habitam. 
Mas sim, é exactamente por isto que devemos parar com a poesia por uns tempos - porque a realidade é esta e terá de ser instalada no nosso sistema até se tornar numa normalidade anormal. 

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Sunday, March 22, 2020

No primeiro dia em que o tempo parou
March 22, 20200 Comments

Naquele primeiro dia, em que tempo começou a parar, era tudo um sussuro abafado. Uma coisa lá de longe, num extremo oriental que pouco conhecemos. Depois vieram os primeiros ruídos de silêncio, como se tal coisa pudesse fazer sentido, mas cada vez mais fortes, cada vez mais perto, o ponteiro dos minutos a passar como horas, os segundos a demorar minutos, uma trovoada ténue, um chuvisco que nem molha. Até que, de repente, o relógio deixou de funcionar. Vimo-nos encerrados nas nossas casas, nos nossos lares, nos nossos hospitais, com algo que está lá fora nas ruas porque também poderá estar cá dentro, de cada um de nós, algo que a natureza colocou numa primeira pessoa que terá passado a outra e a outra e a dezenas e centenas e milhares e milhões de outras pessoas, já longe do extremo oriental. Tornamo-nos assim os nossos próprios inimigos, tornamo-nos eremitas, afastados fisicamente uns dos outros - ou uns mais que outros -, pais de filhos, netos de avós, vizinhos de vizinhos, amigos de outros amigos. Porque o tempo parou. 
E este jogo ainda mal começou. Será que o planeta com armas invisíveis e silenciosas irá conseguir o seu objetivo de mudança ou será que voltamos a ser aquilo que éramos, egoístas, gananciosos, absortos em vidas mesquinas, miseráveis, num ram-ram de casa trabalho, trabalho casa? Deixámos de ir aos nossos empregos, deixámos de ir aos parques, deixámos de ir às lojas, porque tudo fechou, porque o tempo parou. Porque o tempo parou.
Será que vamos saber finalmente ser seres MAIS humanos, ou apenas seremos mais uma espécie que mesmo vendo que está em vias de extinção, e não por causa das causas que se pensavam culpadas, irá continuar o seu rumo de auto-destruição. Será que a riqueza e a economia mundial de um país vale mais do que vidas humanas, será que iremos compreender finalmente o que é o mais fundamental para uma sociedade funcionar. Mas acima de tudo, será que iremos finalmente perceber que não há ricos nem pobres, nem primeiro nem segundo nem terceiro mundo, que a vida não é feita por "andares" sociais ou estereotipos, que estamos todos no mesmo barco, que temos de respeitar estas novas regras, estas novas leis. Tudo porque o tempo parou. 
Mas o tempo parou para a escala humana. O tempo parou para nós. Mas o tempo não parou na natureza. 
Naquele primeiro dia, era a Primavera a chegar, eram as árvores com novas folhas enchendo os ramos outrora vazios em tons verdes, eram as flores a romper para a aurora do dia, para o futuro quente que se avizinha, já era o casal de andorinhas a esvoaçar na rua, a chilrear alegremente, era o pardal a tomar banho numa poça de água da chuva. Porque o tempo, afinal, não parou totalmente. Não para aquilo que o tempo acha que é o verdadeiro, o real e o importante. Não parou para a estação da Esperança.






Fotos realizadas nos Jardins do Palácio Nacional de Queluz, no dia 8 de Março 2020





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Sunday, March 08, 2020

East End, Mulher e Sufragistas
March 08, 20200 Comments


3 nomes. Uma região geográfica, um substantivo, um grupo político. 
Através da História, certamente que conhecemos alguns movimentos sufragistas femininos onde "Votes for Woman" ou "Equal pay for equal work" eram frases-chave na conquista de direitos. Certamente foram estas as principais afirmações que estão na base do Feminismo como se conhece até à data. Uma luta apenas e só por direitos e deveres iguais entre Homens e Mulheres, sem manifestações de uns serem mais importantes ou melhores do que os outros.
O que poucos sabem (e independentemente das afiliações políticas de cada um ou cada uma) é que o East End de Londres, bem como cidades como Manchester, (zonas tipicamente operárias com forte componente industrial) foram o seio dos primeiros grupos conhecidos dos movimentos feministas. 
Em Londres nas primeiras décadas do século XX, Sylvia Pankhurst, tornou-se a estratega do East London Federation of Suffragettes quando percebeu que o movimento feminino sufragista do qual também fazia parte "União Social e Política das Mulheres" - Woman's Social and Political Union, não tinha qualquer impacto real junto aos partidos políticos britânicos. Apoiando-se das suas capacidades intelectuais (e sem dúvida auxiliada pelo facto de pertencer à classe média-alta), fez do East End o seu porto de abrigo. Numa luta intensa pela liberdade e igualdade de direitos, pela possiblidade de voto da Mulher, foi várias vezes presa junto a outros colegas e não raras vezes fazia greve de fome para que as suas vozes fossem ouvidas. 
Coincidindo com o dia 8 de Março, o primeiro boletim da Federação de Sufragistas, editado em 1914, tinha como moto de desafio: "Some people say that the lives of working woman are too hard and their education too small for them to become a powerful voice in winning the vote. Such people have forgotten their own history". Uma rápida resposta a várias críticas que afirmavam que uma mulher da classe operária, trabalhadora ou não, não tinha capacidades para perceber ou saber escolher o melhor para si, para os seus pares e para o seu país. 
Embora fosse totalmente contra o envolvimento do Reino Unido na Primeira Guerra Mundial, durante a qual a maioria dos homens foi enviado para os campos de batalha passando as mulheres a terem um triplo desempenho em "casa", principalmente quando viviam em bairros de extrema pobreza, viu o império britânico a permitir o voto à Mulher em 1918 ao abrigo da reforma do sistema eleitoral implementado no mesmo ano. Na realidade, esta reforma não foi totalmente isenta de intenções; durante os períodos de guerra, pode-se verificar os vários estados que concederam o voto eleitoral às mulheres, uma vez que acabou por pesar nelas um esforço de guerra de maior impacto. Enquanto os homens lutavam, as mulheres acabaram por ter de conciliar as tarefas domésticas, tomar conta de filhos, passando também a ocupar os lugares vagos nas fábricas e outras atividades até então tipicamente masculinas (ou negadas à mulher). O Reino Unido foi não foi contudo dos primeiros países a conceder o voto feminino a nível europeu mas definitivamente não foi o último também (importa não esquecer que em Portugal, por exemplo, apenas após 1974 é que os direitos da "mulher" foram revistos - muito devido ao seu papel na sociedade mas acima de tudo, à sua intervenção dentro do espaço doméstico).
O que falta ainda então fazer para que este dia faça ainda mais sentido? Tudo! Continuamos a ter um longo caminho a percorrer de forma a que os direitos e deveres se tornem iguais. De forma a que não tenhamos sempre de ouvir que estamos a pedir, a procurar, ou porque estamos muito vestidas ou despidas, porque somos mães e porque não somos mães, porque é que não somos assim, ou mais simplesmente, porque é que somos como somos. 

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