November 2021 - Cláudia Paiva Silva

Monday, November 08, 2021

Dilaceração da alma por Tatiana Salem Levy
November 08, 20210 Comments



Conhecendo-se a obra ainda curta de Tatiana Levy, reconhece-se também sua intensidade em descrever contextos, histórias e personagens. Escavacando cada pedaço do mais íntimo de cada personalidade que nos vai descrevendo, a cada livro verifica-se que existem momentos muito pessoais de dor, de trauma, de ansiedade, e quantas vezes o Mal se sobrepõe ao Bem. Relações quebradas, famílias que se amam e se separam, casos de violação ou violência, de auto mutilação, quase como se a dor autoinfligida fosse o caminho para a verdade, para o correto. Como se fosse uma forma de purga, atravessando a dor, chegaremos ao perdão. 

Em Vista Chinesa, o tom não muda, mas a história deixa de ser apenas da cabeça da autora. É uma história resultante de um caso real. Uma violação, uma agressão a uma amiga de Tatiana, que acabará por passar a livro, um livro por vezes incómodo, outras vezes colocando-nos na dúvida do que afinal se espera que as vítimas (ou serão sobreviventes?) façam. Em alguns trechos é colocada a dúvida se a culpa não foi de Julia (a dona do corpo machucado), porque saiu noutro horário, porque mudou suas rotinas. E daí, será que não podemos usufruir de uma cidade ao nosso ritmo, à vontade de nossos impulsos? É, pode, e os impulsos dos outros? Os impulsos dos predadores mais animais que os animais em si, que se escondem atrás da mata, esperando as presas passarem, esperando o exato momento em que saltam, em que apontam a arma, em que ameaçam e arrastam o corpo dentro da floresta, do momento em que rasgam a roupa e abusam selvaticamente? É dessa gente que temos de nos precaver, desses impulsos - controle os seus e você ficará resguardada. Sim, mesmo que a cidade seja o Rio de Janeiro, mas poderia ser Lisboa, Tóquio, Nova Iorque, Berlim ou Londres ou qualquer outra. Não há cidades menos piedosas que outras, existem sim gentes sem alma, com instintos animais. Qualquer um de nós é capaz de matar, mas existe uma candura, um fundo em nós que nos separa dos outros, em normais circunstâncias. 

O que sobra então? Julia, a personagem, vai escrevendo uma carta aos filhos ainda crianças. Estes filhos nasceram já depois do evento. Chamemos-lhe assim, "EVENTO". São fruto de amor, são fruto de tesão e de sexo, entre Julia e o marido, companheiro, que sempre esteve com ela ao longo de todo o processo. Julia sabe que não voltar a ser a mesma, apresenta medo que o trauma possa ter passado para a filha, te claro que tem um certo preconceito em relação ao seu corpo. Preconceito esse que vinha desde criança. Julia lutou muito para que seu corpo chegasse onde ela queria, Era o seu troféu. Era o seu presente a si mesma. Até que o corpo dela se transforma apenas num veículo que transporta uma alma, uma pessoa, uma vontade, um impulso, uma sensação animalesca, orgásmica de Vida. Esse corpo dilacerado durante o "EVENTO" não é mais o corpo que ela tanto adorava. É um corpo sujo, violentado, que não lhe pertence, embora ela sobreviva à violência. 

Talvez não seja o corpo a ser quebrado. A alma é que é dilacerada por cada movimento, cheiro, toque, por fluidos corporais, por sabores, pela mata. A alma é o que cria o nosso trauma, a nossa psique o que nos traz todo o sofrimento. O corpo é só um veículo, um mero transporte de quem nós somos na realidade. 

Quando chove no Rio, Julia acredita que com as águas tudo será levado, limpo e esquecido, como se a destruição ainda que parcial da cidade, (entenda-se do caminho que leva à Vista Chinesa), a lavasse também, a ajudasse a encontrar a paz que tanto procura e anseia. Ao mesmo tempo que Julia recupera, o Raio afunda nos seus próprios traumas, problemas e preconceitos. 




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Sunday, November 07, 2021

Along the botanical garden
November 07, 20210 Comments

Embora os cheiros e temperaturas de Inverno se façam sentir de forma cada vez mais célere, e uma vontade crescente de enfeites natalícios se acumule numa ilusão de que algo está para breve, existe sempre em mim uma vontade de verdes, de tropical e de verão. Presas num cartão de memória fotográfico, existem imagens que possivelmente nunca veriam luz do dia, num registo de vários cliques únicos (algo que estou a aprender a fazer cada vez mais - como se tratasse de uma máquina de rolo). Possivelmente, um dia, quando a própria internet se tornar obsoleta, e quando as redes sociais desaparecerem, num evento potencialmente radical mas necessário a bem da nossa capacidade humana social, também todas as imagens de vários anos irão ser apagadas do universo de uma qualquer "nuvem". Um buraco negro irá sugar as vidas colocadas à vista de todos, mea culpa de cada um de nós. Até lá, existe todo um "dumping" que pode ser feito, mesmo que não seja o correto a fazer. 























Although the feeling of Winter scents and temperatures and a growing desire for Christmas decorations, as an illusion that something special is coming soon, there is always a desire in me for green, tropical and summer-ish things. Stuck on a photographic memory card, there are images that possibly would never see the light of day, in a register of several one-single shots (something I'm learning to do more and more - as if it was a film camera). Possibly, one day, when the internet itself becomes obsolete, and when social networks disappear, in a potentially radical but necessary event for the sake of our social human capacity, the images of several years will also be erased from the universe of a supposed "cloud". In that moment, a black hole will pull to itself the lifes placed in sight of everyone, in a mea culpa from each one of us. Until then, there is a whole lot of "dumping" that can be made, even if it is not the best thing to do.

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Tuesday, November 02, 2021

The Dead are Alive
November 02, 20210 Comments

Por estes dias existe um certo desespero de finitude. Talvez seja a mudança da hora, esse tempo contabilizado pelo homem, que faz os dias agora se tornarem mais pequenos, talvez seja a mudança do tempo, mesmo com as suas oscilações e vacilos, entre o quente e o repentino frio. Talvez seja por ser aquela época de retiro, de fins, para algures num futuro breve (sabemos que assim é sempre) ocorrerem recomeços. Hoje foi o dia de relembrar que existe essa passagem, de um plano físico para um plano etéreo e eterno - a forma como recordamos os nossos, mortos e vivos, é a forma de os manter entre nós ainda. Na nossa memória sim, mas também no nosso coração. E não há distância física ou temporal que nos faça esquecer aqueles que foram realmente importantes e que nos acompanharam nestas mudanças. Os Mortos estão Vivos. 


Foto de Albert Dros


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