Memória - Cláudia Paiva Silva

Tuesday, January 28, 2020

Memória

Lutámos com todas as nossas forças para que o Inverno não chegasse. Agarrámo-nos a todas as horas tépidas, a cada fim de dia procurámos reter o Sol no céu mais um pouco, mas tudo foi inútil. Ontem à noite o Sol pôs-se irrevogavelmente num emaranhado de nevoeiro sujo, de chaminés e de fios, e hoje de manhã é Inverno.
Nós sabemos o que isto significa, porque estávamos aqui no Inverno passado, e os outros aprendê-lo-ão cedo. Significa que, ao longo destes meses, entre Outubro e Abril, em casa dez de nós, sete irão morrer. Que não morrer, irá sofrer minuto após minuto,em cada dia, todos os dias: desde antes do amanhecer até à distribuição da sopa da noite, deverá ter constantemente os músculos tensos, dançar de um pé para o outro, bater os braços debaixo das axilas para resistir ao frio. Terá de gastar pão para arranjar luvas, e perder horas de sono para as remendar quando estiverem descosidas. Já não se podendo comer ao ar livre, teremos de tomar as nossas refeições na barraca, de pé, dispondo cada um de um palmo de chão, pois é proibido apoiarmo-nos nos beliches. Nas mãos de todos abrir-se-ão feridas, e para obter uma ligadura teremos de esperar todas as noites durante horas, de pé, à neve e ao vento.

Primo Levi, Se isto é um Homem

2 comments:

Goldfish said...

Como li hoje, o horror terminou há 75 anos. Mas não começou na abertura dos campos, começou com a desumanização de certas pessoas, com a dicotomia "eles e nós". Que a memória não se apague.

Cláudia Paiva Silva said...

É que é exactamente isso. O Holocausto não deve ser recordado no pós terror. Mas sim a tudo o que o precedeu e o que foi no "durante". O problema é que quem se lembra já quase não cá está. E essa memória não passa disso, duma memória, que em breve não será mais do que uma história passada num tempo em que ninguém do presente esteve realmente lá presente.