Tradição, raízes, cultura, simbolismo, manifestação, mas também excesso, festa, inverso, pecado. O Carnaval, carnem levare (remover ou retirar a carne, numa analogia ao período de jejum que se aproxima), tem origens, como antes dito, pagãs - ideais de fertilidade, de primavera, da passagem de inverno para verão, a transformação dos dias, das paisagens, da rotatividade das culturas. Contudo, a inversão do tempo, a passagem, por exemplo, do tempo astronómico a sul do equador, também auxiliam à caracterização de um período que se repete, desde há largos milhares de anos. A conotação religiosa, de tendência cristã, é definitivamente "recente". Sem nunca apagar a perceção real do que significa ser-se "inverso", o carácter associado à Igreja Católica é, por demais, marcado. O perído que antecede a Páscoa, a época da Quaresma, os excessos e luxo que antecedem o período de reclusão, de abstinência.
Quando visitei o Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras, no passado mês de novembro, desconhecia esta "origem" do Carnaval. Habituada, como muitos portugueses à origem mais folclórica, na qual temos sempre presente a imagens dos caretos, dos chocalhos, dos "avanços" dos homens mascarados às mulheres, num ritual ancestral que evoca a fertilidade, o renascimento, ou a vida sobre a morte, esta questão do "inverso" não fazia parte da minha oratória.
Muitos países, nomeadamente junto ao equador, cuja dicotomia ricos versus pobres é gritante, pairando sempre um sentimento de religiosidade que não é de todo aceitável (pela criminalidade, pelos falha de direitos humanos, pela violência e abuso contra mulheres e crianças), o Carnaval vive-se com especial comoção. Não menciono sequer o Carnaval brasileiro que dispara nas origens culturais mais ou menos associadas ao colonialismo.
Contudo, é um período onde o homem veste-se de mulher, a mulher de homem, o negro pinta-se de branco e, mesmo atravessando um atual período conturbado na história social mundial, o branco pinta-se de negro, invrertendo papéis, onde não há diferenças. Ou então, onde as há ainda maiores, num momento repetido, anual, no qual a sátria e a crítica, ganham especial importância.
E ainda temos um conceito de luxo que pode e deve ser associado. Como não falar dos sumptuosos Carnavais de Veneza?
A começar pelo vestuário. "Na Veneza do século XVI, também existiam normas quanto ao vesturário, o seu feitio, corte e material, segundo a respetiva posição social, mas as leis que foram publicadas contra o luxo e a ostentação não eram tão rigorosas na urbe da laguna, onde se faziam deslumbrantes vestidos de brocado de seda, veludo, damasco, musselina e rendas venezianas, os quais criavam tendências de moda que depois abriam caminho até aos paços do Renascimento, como por exemplo, as golas de tufos." Além dos tecidos, as cores usadas também evocam a classe social, índigo e púrpura, por exemplo, seriam os corantes mais caros, aos quais ainda se juntavam no fabrico de peças, fios de ouro, trabalhando-se os bordados e, claro, usando as rendas do decote e punhos. Aliás, os grandes decotes, cobertos pelos véus e rendas, pautavam por um simbolismo de pureza virginal, e, não menos importante, de mistério.
Já as máscaras têm por origem outra razão. A proteção da doença, feita de melhor o pior forma, ganha predominância logo a seguir à devastação deixada pela Peste. Por outro lado, sabendo que uma tez clara sempre foi sinónimo de classe social elevada, o uso de máscaras ao sair de casa, serviria, essencialmente, para proteger a face dos raios solares.
O uso carnavalesco tem outra justificação. O mistério, o não saber quem está por detrás, o anonimato - que fácil é cometer os mais variados pecados quando ninguém sabe quem somos. Era acessório indispensável para os bailes, para as ruas, para o dia-a-dia. A máscara protegia os rostos e fazia desaparecer as diferenças.
Em Veneza a máscara usada pelas mulheres designa-se por moretta, geralmente em formato oval feita de veludo. As máscaras de seda, geralmente negras, eram ricamente decoradas com pérolas ou penas, mas mais simples ou não, faziam parte do ritual.
A esta distância temporal, e quiçá, sensorial, o Carnaval, Entrudo, continua a ser um período exclusivo, com forte teor religioso, mas também, mítico, e onde o pendor de escárnio pautado por forte influência social, é ainda bastante explícito. As diferentes influências constatadas, nomeadamente em Portugal e no Brasil, onde o corso ganha relevância, tal como o período pré-pascal, constituem os percursos cujas raizes continuarão a fazer-se sentir ao longo dos séculos.
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