O nosso Purgatório; a nossa Purga - Cláudia Paiva Silva

Wednesday, November 20, 2019

O nosso Purgatório; a nossa Purga

Nem sempre é fácil pegar nos textos clássicos, levá-los a palco e fazer com que o público entenda. Não porque sejamos tontos, mas porque muitas vezes os contextos históricos mudam e tudo parece muito velho, muito antigo, tão antigo que nem parece real, ou que possa ter realmente ocorrido. Contudo, quando transportados à realidade atual e integrados no nosso dia-a-dia, estes textos, tão velhos, seculares, parece que batem em cheio, que foram escritos para nós, todos, como um núcleo, para que possamos ouvir, ver, acima de tudo pensar e perceber. 
Até dia 24 de Novembro aconselho a verem a peça O Purgatório, segundo ciclo da Divina Comédia de Dante Alighieri, no Teatro Nacional Dona Maria II. Uma vez mais trazido à luz pela Companhia de Teatro O Bando, depois do simbolismo de Inferno em 2017. Quanto mais não seja para esse esforço maior que é realmente o "tentar perceber as coisas" que nos rodeiam, para onde vamos e de onde viemos. Qual é este "purgatório" por onde estamos a passar, quase em rebanho de ovelhas, cabeça baixa, sem ver nada em volta. Poderia dizer que o pensamento que surge é de uma espécie de Alegoria da Caverna, segundo Platão, e não está muito longe, mas vale sempre a pena pensar mais um pouco, tentar chegar à Luz do Conhecimento, não padecer desse mal que é o dogma e aceitar tudo o que nos dizem como verdade absoluta.



"A primeira reação é de assombro. Um arrepio incrível que nos percorre a espinha à medida que vamos escutando o maravilhoso Coro Setúbal Voz na sua participação triunfal e essencial na peça de Dante, aparecendo no início quase como mortos-vivos, num crescendo de música que enche a sala. Depois, a comparação feita nesta nova adaptação pelo Teatro O Bando aos dias de hoje, à nossa realidade, à nossa História moderna. E por fim, nós, humanos espectadores e atores, sendo as sombras que caminham ordeiramente, qual rebanho, atrás de um deus, de dinheiro, de aceitação, de rendição e de perdão, numa rota com destino certo ao Paraíso. Ou talvez a um destino que nos faça acordar do marasmo quotidiano, da mediocridade. Dante é aqui um de nós, uma sombra que ao princípio não consegue ver e não tem voz, uma sombra que apenas segue a ideia de uma Beatriz que não se encontra no mesmo plano físico em que ele se encontra, um Dante que tem espasmos, que não se consegue mover, e que aos poucos começa a ser guiado por um “mestre”, Vergílio, pessoa/sombra mais sensata que o vai “educando” e “curando” da cegueira, e também por Matilde, a sombra sarcástica e irónica que o irá chamar à realidade dos factos, ao que é óbvio, embora também se venha a revelar uma serva da Morte e da Esperança.
O que resulta? A sensação de andarmos agora, aqui e no Presente, no real Purgatório, com um Passado já passado, para um Futuro a que apenas podemos mesmo encarar com o olhar de Esperança, pondo fim ao que nos prendia, ao que nos tornava zombies. Mesmo que para isso tenhamos de perder a questão do Eu e mesmo que para isso tenhamos de ser Ninguém, tal como Dante diz no fim.
A marcar o passo desta caminhada, que é na verdade uma reflexão interna, existe a presença maravilhosa de Fernando Luís, Rita Brito, Sara Belo e Nélson Monforte, num espetacular exercício não apenas de interpretação textual, mas sim física e vocal, dando ainda maior ênfase à importância que é a dificuldade da travessia feita por Dante durante os três dias e três noites em que dura."

Texto originalmente publicado aqui: Purgatório na Revista Rua


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