Nem sempre é fácil pegar nos textos clássicos, levá-los a palco e fazer com que o público entenda. Não porque sejamos tontos, mas porque muitas vezes os contextos históricos mudam e tudo parece muito velho, muito antigo, tão antigo que nem parece real, ou que possa ter realmente ocorrido. Contudo, quando transportados à realidade atual e integrados no nosso dia-a-dia, estes textos, tão velhos, seculares, parece que batem em cheio, que foram escritos para nós, todos, como um núcleo, para que possamos ouvir, ver, acima de tudo pensar e perceber.
Até dia 24 de Novembro aconselho a verem a peça O Purgatório, segundo ciclo da Divina Comédia de Dante Alighieri, no Teatro Nacional Dona Maria II. Uma vez mais trazido à luz pela Companhia de Teatro O Bando, depois do simbolismo de Inferno em 2017. Quanto mais não seja para esse esforço maior que é realmente o "tentar perceber as coisas" que nos rodeiam, para onde vamos e de onde viemos. Qual é este "purgatório" por onde estamos a passar, quase em rebanho de ovelhas, cabeça baixa, sem ver nada em volta. Poderia dizer que o pensamento que surge é de uma espécie de Alegoria da Caverna, segundo Platão, e não está muito longe, mas vale sempre a pena pensar mais um pouco, tentar chegar à Luz do Conhecimento, não padecer desse mal que é o dogma e aceitar tudo o que nos dizem como verdade absoluta.
"A primeira reação é de assombro.
Um arrepio incrível que nos percorre a espinha à medida que vamos escutando o
maravilhoso Coro Setúbal Voz na sua participação triunfal e essencial na peça
de Dante, aparecendo no início quase como mortos-vivos, num crescendo de música
que enche a sala. Depois, a comparação feita nesta nova adaptação pelo Teatro O
Bando aos dias de hoje, à nossa realidade, à nossa História moderna. E por fim,
nós, humanos espectadores e atores, sendo as sombras que caminham ordeiramente,
qual rebanho, atrás de um deus, de dinheiro, de aceitação, de rendição e de
perdão, numa rota com destino certo ao Paraíso. Ou talvez a um destino que nos
faça acordar do marasmo quotidiano, da mediocridade. Dante é aqui um de nós,
uma sombra que ao princípio não consegue ver e não tem voz, uma sombra que
apenas segue a ideia de uma Beatriz que não se encontra no mesmo plano físico
em que ele se encontra, um Dante que tem espasmos, que não se consegue mover, e
que aos poucos começa a ser guiado por um “mestre”, Vergílio, pessoa/sombra
mais sensata que o vai “educando” e “curando” da cegueira, e também por
Matilde, a sombra sarcástica e irónica que o irá chamar à realidade dos factos,
ao que é óbvio, embora também se venha a revelar uma serva da Morte e da Esperança.
O que resulta? A sensação de
andarmos agora, aqui e no Presente, no real Purgatório, com um Passado já
passado, para um Futuro a que apenas podemos mesmo encarar com o olhar de
Esperança, pondo fim ao que nos prendia, ao que nos tornava zombies. Mesmo que para isso tenhamos de
perder a questão do Eu e mesmo que para isso tenhamos de ser Ninguém, tal como
Dante diz no fim.
A marcar o passo desta caminhada,
que é na verdade uma reflexão interna, existe a presença maravilhosa de
Fernando Luís, Rita Brito, Sara Belo e Nélson Monforte, num espetacular
exercício não apenas de interpretação textual, mas sim física e vocal, dando
ainda maior ênfase à importância que é a dificuldade da travessia feita por
Dante durante os três dias e três noites em que dura."
Texto originalmente publicado aqui: Purgatório na Revista Rua
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