Pouco tempo antes destes estranhos novos dias que estamos a viver, fui rapidamente e já no último dia de apresentação até Braço de Prata, onde na Underdogs Gallery, algumas das obras mais conhecidas de Tamara Alves estavam expostas. Aproveitando a presença da artista, acabei por lhe fazer uma curta entrevista para a Revista Rua onde nada ficou por dizer, a qual também, percebi pouco depois, poderia perfeitamente ter evoluído para uma conversa onde sociedade e direitos humanos seriam temas chave, além de formas de inspiração, filmes e música, e todo o potencial que o nosso país, de norte a sul, do interior ao litoral tem para dar e oferecer a quem não tenha medo de ser ousado e de correr riscos de parecer ridículo.
Esse texto, publicado originalmente aqui, poderá agora ser lido também aqui no blogue:
Tamara Alves será porventura uma
das mais conhecidas artistas plásticas de arte urbana em Portugal. Nascida em
Portimão onde viveu até aos 18 anos, filha de pais também pintores que são a
sua maior influência, cedo mostrou uma capacidade inata para o desenho complexo
que foi posteriormente sendo acompanhada pela forma como lidava com os vários tipos
de materiais disponíveis e tintas. Depois veio a licenciatura nas Caldas da
Rainha e finalmente Erasmus em Birmingham, no Reino Unido, onde ganhou o gosto
pela arte urbana. Nesta sua exposição a solo mostra algumas das pinturas e
esquissos mais emblemáticos da sua carreira, onde o feminino e o animal estão
sempre presentes, numa definição direta de todo o seu trabalho, onde selvagem
se funde com humano e irracional, onde a pele nua de mulher e homem contrastam
com a existência de metais do dia-a-dia industrial, onde lobos convivem com a
natureza, onde a natureza é no fundo o nosso habitat natural. Onde também há
sempre Amor e Paixão.
Numa curta entrevista à Rua, minutos
antes de um workshop de desenho para
crianças, Tamara explicou como se sente enquanto artista feminina em Portugal,
as principais diferenças que observa entre as cidades do litoral e do interior
do país em relação ao desenho e arte urbanas e qual o papel do artista na
sociedade.
- Como foi o teu percurso desde
Portimão até ires para as Caldas? Os teus pais são pintores, de que forma é que
isso foi um impulso para ti, uma vez que nem sempre é comum seguir as pesadas
dos progenitores?
“Nasci já a pintar com os dedos! A
minha mãe diz que eu ainda antes dos 2 anos já fazia desenhos super complexos,
muito diferentes daquilo que as crianças da mesma idade fazem. E como ambos são
pintores, para mim sempre foi muito natural a forma como lidar com os materiais.
Nunca tive medo em experimentar – sabia desde muito jovem o que dava para
misturar ou não, sou desenrascada, o que dá imenso jeito na minha área, mas
continuo sempre a aprender a ganhar experiência. Felizmente sempre tive uns
pais que me apoiaram e incentivaram, nunca me limitaram – lá em casa (em
Portimão) existem desenhos meus desde os 9 anos de idade no meu antigo quarto e
sempre que queriam partir paredes, pediam-me e ao meu irmão para ir pintar essas
paredes antes de mudarem alguma coisa.
Outro incentivo acontece porque
eu cresci perto da praia do Carvoeiro, e como no Algarve há muito pouca oferta
cultural, havia sempre um deslocamento aos fins-de-semana – às vezes íamos a
Lagos ou a Lisboa ver exposições e isso dava para aprender e ganhar mais informação,
educar, ver e conhecer.”
- Qual achas que é a principal
diferença entre a tal oferta cultural, principalmente artística de pintura, e o
conceito de arte urbana, porque é aquilo que começou a ser a tua imagem de
marca, com as pinturas em edifícios e murais, entre cidades como Lisboa e o
Porto e cidades do interior, como Castelo Branco, onde já foste convidada para
o Festival WOOL ou Trás-os-Montes? Como vês que as pessoas reagem?
“Para começar em Lisboa, tu vês
tudo e consomes tudo de uma forma muito mais rápida. Tens uma parede, vês a
parede, pintas a parede, e vais para a tua vida. Demoras cerca de uma hora a
chegar ao café onde tinhas combinado alguma coisa. Nos locais mais pequenos (e
nas pessoas mais velhas – aqui independente da região do país), tu vês um maior
cuidado com a sua terra e sítio, vês uma valorização pelo espaço que se calhar
a nossa geração já não tem tanto. Quando vais então para locais mais pequenos, deixar
lá alguma coisa, elas ficam na dúvida, desconfiam do que vais lá fazer, ficam na
defensiva e aí é importante conhecer essas pessoas, conviver com elas, ouvir o
que elas têm para dizer. E se deixares algo que seja para a cidade, uma
oferenda, então que seja algo com uma mensagem. Existe uma responsabilidade
social enorme no trabalho de rua. Não é estar a apontar os dedos, ou dizer como
as pessoas devem agir, é preciso aliás ter cuidado com o que dizes e respeitar
toda a gente – mas se estás na rua, as palavras tem um peso, as imagens têm um
peso e se for para passar alguma mensagem que seja algo inteligente.”
- De certa forma são as pessoas
mais velhas do interior as mais recetivas?
“Sim, no início ficam muito
defensivas, mas depois acabam por valorizar, e gostar, principalmente se já te
conhecerem e acompanharem o teu percurso, e guardam aquilo possessivamente, é
para eles, deles, defendem aquele trabalho. Já nas cidades “grandes”, a
mensagem tem de ser mais direta e mais forte.”
- Viveste em Birmingham. O que
achas que é diferente entre o feminino artístico cá, em Portugal e o que
conheceste lá fora?
“Eu acho que quando falamos do
papel na arte dizem sempre que somos poucas, e sim, a balança esta muito
desequilibrada. Mas se calhar é porque tens mulheres que não querem mostrar o
seu trabalho, não têm interesse ou acham que não podem. Então eu digo: elas que
saiam e que venham fazer coisas. A rua é uma tela de exposição gigantesca e
toda a gente está de olhos postos na rua agora. Hoje em dia mais que tudo é
aproveitar a “onda” do feminismo, se estamos a ganhar mais consciência, melhor,
então vamos mostrar o que valemos. Já passei por situações muito desagradáveis
em que me pagaram para estar presente, para fingir que estava a trabalhar e se
calhar aceitei com imensa dificuldade porque precisava do dinheiro. Mas qual é
afinal o meu papel? É suavizar um meio de homens? Não é! Sei que somos 3 ou 4
muito ativas no meio de arte urbano, mas são várias exposições por ano e vai
uma ou outra apenas para preencher o buraco da única mulher que está
disponível. E isso é muito complicado, mas é preciso aproveitar e marcar
presença para fazer a diferença!”
-Sim, o que é que se pode perder,
principalmente durante esta altura?
“Ainda por cima, no meio de arte
urbana, há muitos anos atrás, senti que havia uma desconfiança quando dizias
que querias fazer alguma coisa. Nós vivemos numa sociedade machista – se hoje uma
mulher quer ser condutora de um Uber ou um autocarro, há ainda uma censura
imediata porque foi a sociedade que nos faz pensar dessa forma, é normal – por
isso é uma questão de darmos a volta. Mas para mim, é uma questão de igualdade
para todos. Para uma mulher ter empoderamento, o homem tem de se sentir também
empoderado.”
-Tem de haver um equilíbrio…
“Sim, a maior parte das
desigualdades é criada devido às inseguranças das outras pessoas.”
- Tu retratas tanto o universo
masculino como o feminino nas tuas pinturas.
“Sim. O feminino porque sou
mulher e sei exatamente como me colocar na pele de uma mulher. E acho que é
importante, já que retrato o peito de um homem nu, retratar o peito de uma
mulher também nu, porque é importante assumir-se tanto para um como para outro.
Fiz um trabalho no Hospital dos Capuchos, onde o nu era essencial para que
fizesse sentido e houve alguém que chegou lá e pintou os seios da figura
feminina, mas como se tivesse sido eu a fazê-lo (está muito bem feito). E isso
chateia-me. Uma coisa é fazerem tags ou
bigodes por cima e isso não me chateia nada, mas quando vão desconstruir o teu
trabalho e a mensagem que queres transmitir, isso é algo que me irrita muito.”
-Para finalizar porque já tens um
público mais jovem à tua espera na sala ao lado, o que dirias à Tamara de há 20
anos atrás?
“Vai em frente, força e não
desistas, porque tudo vai correr bem. Pode doer, mas vai correr bem (risos). Se
há persistência, se há amor e paixão, então vai ter de correr bem.”