Cláudia Paiva Silva

Saturday, January 11, 2025

Veneza aqui ao lado
January 11, 20250 Comments

                                 Giovanni Antonio Canal, dito Canaletto, "Regatta no Grande Canal"


Existe algo na luz de Veneza que nos parece familiar. Numa terra que hoje está rendida (e vendida) aos interesses enconómicos associados ao turismo de massas, pautadas por bons rendimentos, surpreende ainda quando, pela manhã, os primeiros raios de sol, a primera luminosidade, se acerca dos canais, das fachadas dos edificios, estoicamente construídos sob o mar.

Veneza, cidade que já foi República, controlando o Adriático, sempre pautou pela sumptuosidade. Não era um lugar como os outros. O seu poder extendia-se até Constatinopla, e inlcuia Creta e Chipre, o Império Bizantino respeitava a região. As trocas comerciais, as portas com o Oriente (onde começa, onde termina, afinal?), todos estes fatores, faziam com que a designada "Sereníssima" se destacasse. Não apenas pelos negócios. Mas pelas suas gentes. Famílias abastadas, de origem nobre, o próprio Dux, e o seu Ducado, os palácios construidos, as sedas, os veludos, as obras de arte. 

Até que a sede de Poder, as guerras internas, externas, os conflitos por região e território, a Humanidade a fazer o que melhor sabe, pilhar e destruir, deixaram Veneza perdida. Uma vasta região de pequenas ilhas que poderia ser tomada por qualquer um dos interveninetes bélicos. Viessem de norte, ou de sul, do oriente ou ocidente. A sua independência fortemente abalada. Para sempre perdida. 

É, no entanto, e já num período no qual se poderia avistar o fim, que alguns dos maiores mestres da pintura italiana (mas também europeia) se aproximam da cidade. Muitos deles, chegados por via do "Grand Tour", as viagens que os jovens europeus, provenientes, claro, de famílias titulares, da nobreza ou aristocracia, faziam, por objeto de conhecerem as diferentes capitais, absorvendo cultura, línguas, manejos e costumes. 

Giovanni "Canaletto", Francesco Guardi, Bernardo Belloto, são alguns destes artistas, que se destacam pela grandiosidade do detalhe com que pintam a cidade. Sem nunca deixarem de conservar, como se fosse possível o fazer, os edifícios emblemáticos, pintam e retratam uma sociedade em festividade. 

No Museu Gulbenkian, possível de ser vista até 13 de janeiro, esta próxima segunda feira, a exposição "Veneza em Festa" é a resposta direta ao início deste texto. Mesmo que a sala onde está patente, preserve a solenidade de uma exibição grandiosa, porque não, luxuosa, a luz que emana das obras expostas, é realmente contrastante com o restante contexto. É impossível não ter essa noção de realismo, quando nos lembramos das imagens que conhecemos das gondolas, das pontes, dos emblemas da cidade italiana. 

E, uma vez mais, a abrangência do momento - Veneza, conhecida pelo seu Carnaval, a sua festa de inverso ainda mais extremada, onde mascarados convivem com harlequins, sem sabermos quem é quem, é aqui retratada no Dia da Ascensão, já em pleno momento de primavera, após a celebração da Páscoa, rigorosa, controladora. Sente-se a atmosfera de primeiro calor estival, as cores mais cândidas e vivas, a alegria da chegada do Dux, as fachadas engalanadas. Mas também outros motivos que são conhecidos e indentificados por "vedutismo" - a representação da paisagem urbana, ou ainda, os "capricci", resultado da imaginação de cada autor, podendo conter elementos irreais ao espaço e ao tempo. 

Sim, Veneza está em Lisboa, e consegue-se sentir o séc. XVII. Uma cidade no seu auge e apoteose, qual atriz na sua última cena em palco, aquela que arranca os aplausos do público que estaria ainda ávido por mais. 



Giovanni Antonio Canal, dito Canaletto, «O Grande Canal Visto de San Vio, Veneza»

Francesco Guardi. Detalhe da obra «A Festa da Ascensão na Praça de São Marcos Veneza»



 

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Sunday, January 05, 2025

5/365
January 05, 20250 Comments

 

Existe, claro, algo que acusa uma obra ou objeto ser mais ou menos destacada de entre as demais. A criatividade por detrás da sua construção (da ideia ao real).
Cada um poderá evocar as diferentes opiniões sobre o tema, como ou a forma, ou a capacidade intelectual do ser criativo. Não olvidando, claro, as profícuas sensações de influência ou inspiração. 
É nessa óbvia busca pelo que poderá ser mais original, que nos deparamos com cenários onde o tempo/espaço parecem ter ficado incómules. Parados em imagens de cores que merecem o detalhe de olhar (e que, afinal, não passarão de breves instantes até que tudo mude). 
Observando a paisagem citadina neste início do ano, os tons pálidos ou de quebra de dia solar, sobrepõem-se à urbe. 
Registamos a natureza que ainda se pode ver nestes contrastes, passeamos em jardins construídos para esse propósito de "mentira", mas que nos afasta (quase) do local real onde estamos situados, numa sensação de conforto. 
A criatividade alimenta-se destes pequenos momentos.




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Saturday, January 04, 2025

4/365
January 04, 20250 Comments

 



Veneza em Festa - Exposição no Museu Calouste Gulbenkian


Na pesquisa sobre o conceito de Arte e Estética, e igualmente sobre o Luxo, deparo-me com a imensa dificuldade nas suas definições. Ou pelo menos uma definição que seja mais ampla e que possa abranger as várias descrições que cada um de nós, no nosso plano individual, mas também como elementos coletivos da sociedade moderna, lhes possamos dar. De certa forma, são caracterizações que, ideia geral, terão de conferir um grau emocional, um sentimento - embora sejamos nós, humanos, os sujeitos com capacidade para garantir esse peso a algo material, num mundo físico. 

Contudo, a sua origem, que remonta às primeiras tribos, representam, tendo por recurso pigmentos que nos chegam aos dias de hoje, cenas da natureza, fauna e flora. Evoluindo ao longo de milhares de anos, estas manifestações tornam-se particularizações espirituais ou rituais. A exultação a deuses e criadores, personagens mitológicas ou outras reais. A Arte e a Estética vão avançado lado a lado, nem sempre com o conceito como hoje o conhecemos. E ainda assim, vão dependendo das diferentes regiões e culturas mundiais, sendo que, onde uns consideram, a exemplo, o "vedutismo" um género de arte na pintura, outros exemplificam o chá, a água, um jardim, como elementos que podem e devem ser representados pelo seu simbolismo e importância social. 

Com o surgimento da fotografia, a amplitude aumenta. O desejo de retratar de forma direta, o momento presente, recordação para o amanha, acaba por transformar, uma vez mais, o objetivo da Arte, ou, melhor, acaba por se transformar, em si mesmo, em mais uma forma da mesma. 

Pessoais e objetivos, Arte e Estética, afinal, dependerão de quem os aborda e de quem é seu espectador. Ou da sugestão que lhe é dada, ou até mesmo de um interlocutor (um influenciador). Uma imagem pode ser "bela" aos olhos de um grupo de pessoas, independentemente da forma como lhes é apresentada, seja por escultura, pintura, desenho, fotografia, música, cinema ou de tantas outras maneiras. Uma imagem pode apenas ser significativa, impactante a quem a cria ou a uma única pessoa que a aborda. No fundo, como escreve Martim Sousa Tavares em "Falar Piano e Tocar Francês", "o poder da atribuição de beleza (aloca-se) na pessoa que observa e não no objeto observado, fazendo com que este não tenha determinado valor absoluto e intrínseco". 

Transportando esta teoria para o prisma de luxuosidade, pode-se afirmar que uma obra de arte, mais do que a sua estética, que, por sua vez, é muito mais susceptível à ideia do espectador, terá apenas valor quando se distingue pelo legado e capacidade de adaptação às diferentes gerações? Uma vez mais, qual será o preciso momento no qual um objeto deixa de apenas o ser e transfigura-se em algo admirável, além de belo, transmitindo sensações únicas? 

 

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Wednesday, January 01, 2025

dia 1/365
January 01, 20250 Comments

 



Algo que é criado para ser olhado, apreciado, tido como exclusivo, elevando-se da categoria dos demais objetivos, da restante Arte e até mesmo, Cultura. Algo que cause impacto, seja prazeiroso, podendo ser supérfluo ou não. 

Outra definição que poderia caracterizar o tema "Luxo" e que dá origem aos futuros textos e monólogos durante este novo ano. Algo diferente sim.






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Tuesday, December 31, 2024

a virada do calendário
December 31, 20240 Comments





TIC TAC

TIC TAC

TIC

TAC



Poderia ser mais uma publicação sobre o final do ano. Mas na verdade, queria fazer deste texto uma quase monografia sobre a transição do momento. Ou aquilo que para muitos se inicia por "inverso", ou a subversão da ordem. 

O conhecido intervalo de tempo no qual as pessoas entregam-se às festas e aos prazeres, tenham eles qualquer origem, para, de seguida, iniciarem um período de restrição que, não raramente tem começo na Páscoa e término no Dia da Ascensão. 

Mas falar disso, implica todo um trabalho de pesquisa que ainda não está completo, pelo que apenas posso garantir - aproveitem estes meses próximos. Encham os olhos, encham as mentes, cultivem-se. Visitem exposições, leiam livros, não se iludam por pequenos ditadores, sejam eles de que lado forem da barricada. 

Vivam cada momento, cada dia. Porque se estou, ou quero falar de luxos, de preciosidades, de momentos, de transições, de virada do calendário, apenas uma única coisa é comum a todos: o Tempo. Nada mais. E mesmo assim há que o perca rapidamente, em devaneios, em pouca lucidez, porque é mais fácil atenuar as dores em algo que nos deixe sem conseguir sentir. 

Como disse há dias a uma inspiração minha, podemos parar, e nem perder tempo com essa paragem. 

Dia a dia, de cada vez. 





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Wednesday, December 25, 2024

novamente, natal.
December 25, 20240 Comments



Falar de natal é falar de rituais. Sejam eles de origem cristã, ou, mais adequadamente, de origem pagã. Podemos, se quisermos, dissecar a epoca de festa, apontando para a necessidade básica e, muitas vezes, conturbada de óbvio massacre e obrigação, de juntarmos no mesmo espaço, um grupo de pessoas, muitas vezes associadas por sangue (família biológica), mas das quais só queremos uma coisa ao resto do ano - a distância de segurança, normalizada, de forma a evitar perguntas intrusivas ou discussões sobre os diversos temas da atualidade, que, cada vez mais, mostram uma fratura na sociedade moderna. 

É, claramente, a época que anuncia os excessos de consumo, seja material ou, porque não, alimentar - o início de uma época designada por "inverso" que irei melhor explorada em breve, refletindo sobre a sua origem e sobre a sua associação com o que se entende por "luxo".

Podemos refletir sobre isto, ou podemos mencionar que o natal corresponderá a um recomeço, a uma época de início, apontada dias antes pelo solstício de Inverno (a noite mais longa que dá origem aos dias maiores e mais quentes), o ponto mais afastado do sol em relação à terra. Há quem evoque a tradição da queima do madeiro, que ocorre na noite de 24 de dezembro, na verdade, o fogo que aquece Jesus nascido, e podemos também averiguar a sua origem mais remota, de como se celebrava o fenómemo astronómico, também ele associado a um novo ponto de partida, pelos povos celtas.

Seja como for, é, definitivamente, o momento de transição anual, validando um calendário mais ou menos lunar, que antecede o início de um novo ano, de prosperidade, crescimento, fertilidade, que culminará no estio. 

Não deixa, no entanto, de ser também, uma época de reflexão. Deveria de ser uma época de recolha, de maior solitude. 


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Sunday, November 17, 2024

os dias banais
November 17, 20240 Comments

 




Ao ler Beatriz Serrano (Madrid, 1989) e o seu "O Desencanto", pauto por momentos de riso audível, ao mesmo tempo que vou sublinhando (algo quase raro em mim, mas que tem vindo a ganhar espaço) alguns parágrafos que batem em cheio com a realidade que atravesso.

A começar, "O Desencanto" é um livro contemporâneo, localizando a ação em Madrid, mas que poderia passar-se em Lisboa, Porto, Londres - qualquer uma dessas metrópoles europeias, desde que a personagem principal (nós mesmos) nos sentíssemos em uníssono: num enorme buraco negro na vida laboral, no qual os "highlights" passam pelo tempo entre a nossa casa e o escritório. Momentos durante os quais podemos alienar-nos, lendo, ouvindo música, fazendo algo que realmente nos agrade e quiçá, preencha mais, no que respeito diz a fazer-nos sentir úteis ou, simplesmente, felizes. 

Outros momentos que aligeiram o tormento: exposições, podendo trocar o Prado da história (não tão) ficcionada, por uma Gulbenkian ou Arte Antiga, palestras literárias, ver vitrines e montras. Como escreve a autora, não inteiramente por estas palavras, "coisas que não são feitas para o tamanho da nossa parca conta bancária, mas que nos preenchem a alma.

Seja como for, desde quando cheguei a este ponto? Qual terá sido o momento preciso em que me tornei igual, exatamente igual, a todo um grupo de pessoas, trabalhadoras, sim, mas com quem nunca me tinha (nem queria) identificar?

Podemos falar do cansaço de ter de lutar para pagar contas, as quais nem dois trabalhos (precários) conseguem colmatar, as constantes preocupações com saúde de familiares, verificar o estado lastimável para onde o mundo se vira - e saber que muitos rejubilam de felicidade em ver que estamos recuar décadas (talvez séculos) de evolução social. 

Mas a verdade é que sim, a vontade de atirar a toalha ao chão é brutal, num mundo onde parar não é opção, mas continuar a remar contra a maré, também não parece ser inteligente. 

De acordo com "O Desencanto" a personagem principal, publicitária por trabalho - não por profissão -, ensina-nos (a todos, independentemente do que façamos), como "sobreviver" a cada dia de labuta. Como consegue fazer de conta que faz muita coisa e apresentar trabalho, quando na verdade, apenas faz o que todos os outros fazem, copy-paste de ideias, apresentadas com outra roupagem, com outras palavras e voilá, feito. Isto, temos de admitir, SEM RECORRER a essa máquina maravilhosa que é o chatGTP - coisa medonha, mas que dá imenso jeito quando a inspiração parece não querer colaborar. Conto pelos dedos de 1 mão apenas as vezes que recorri à IA para me lançar umas duas frases que me dessem alento. Ainda assim, é uma ferramenta útil, caso a saibamos usar (bem!) em nosso proveito.

Ainda assim, garantidamente, algo diferente se apoderou da minha pessoa. Sinto que me aproximo mais (e não apenas por empatia) das pessoas que comigo andam nos transportes públicos, a tal classe social que é identificada como pobre (e, graças a uma comunicação social elitista, como perigosa ou criminosa), das mulheres que terão, certamente, nas suas cabeças muitíssimo mais do que afazeres profissionais, mas sim domésticos e familiares. 

E apesar da minha cabeça borbulhar de ideias, a minha capacidade de enquadramento e organização de pensamentos, acaba por estar anos-luz de distância de qualquer funcionalidade. 

Ou é por cansaço, ou porque a procrastinação não ajuda. 

A exemplo, demorei 4 dias a partilhar este texto, estando o primeiro parágrafo redigido num caderno. E entretanto, quantos temas terei debatido com conhecidos ou amigos, coisas sem qualquer suposta relevância ou, pelo contrário, com toda a importância que, para mim, apresentam? 


Os dias banais sucedem-se, pois é, em dias de, agora outono, que não se prolongam, bem pelo contrário, nem tão pouco repetem. A cadência, ou decadência, temporal é real, embora possam ajudar as temperaturas acima do normal, que neste fim de semana se fazem sentir. Mas a noite avança rapidamente, pedindo para recolhimento, e algum silêncio. Mesmo mental. 

Há quem possa também falar em depressão, melancolia, saudade, ou simplesmente, solidão. Mas sabem que agradeço o estar sozinha num mundo em ruído permanente, onde notícias são partilhadas e estilhaçadas no mesmo momento, dessecadas à verdade e à mentira perante as crenças de cada um de nós. 

Na verdade, e citando o livro que agora me passa pelas mãos e olhos, "A verdade é que não sei fazer nada em particular e não sei como é que cheguei até aqui. Desconfio que fui aperfeiçoando a brincadeira dos escritórios até que os outros começaram a acreditar que sou uma grande profissional". 

Errata - EU SEI QUE SOU uma grande profissional, mas sei que estou subaproveitada e a perder qualidades, se não me auto alimentar intelectual e cientificamente. 




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Saturday, November 02, 2024

As sopeiras do Marco Paulo
November 02, 20240 Comments

Marco Paulo morreu, VIVA Marco Paulo.

Goste-se ou não do estilo musical, das canções românticas, muito datadas de anos 80, com um quase nada, quase tudo de sotaque português a partir de uma versão brasileira, ou de arranjos a partir de originais espanhóis ou italianos, Marco Paulo foi um dos maiores ícones da música nacional.

Será impossível não se conhecer pelo menos um refrão do extenso repertório. Pelo que, a agora tendência de se interrogar "Quem?" sempre que algum artista (non-grato) desaparece deste plano, é, no caso, completamente abjeta.

Posto isto, os comentários após o seu falecimento, demonstram um profundo desconhecimento social, diria até musical, desconsiderando a enorme voz do artista. Contudo, o que mais choca foram as retóricas estabelecidas com base no típico preconceito, diria mesmo, machista. Sei que ninguém o é em Portugal (por quem sois), claro, mas quando se limita Marco Paulo a uma faixa social apenas feminina, e não raramente, pobre e iletrada, as "sopeiras" como Luís Osório tão bem recordou no seu elogio ao cantor, as "donas de casa", existe, sem dúvida uma agravante desnecessária. 

Tal como nas últimas semanas, muitos elementos da nossa elite, promoveram os suburbanos a gente pobre, sem acesso à educação, e, também, potencialmente perigosa, assim que Marco Paulo morreu, o espetro aumentou ainda mais. Afinal eu estava certa - somos mesmo quase analfabetos(as), que sonhavam alto enquanto cantarolavam as cantigas de amor, enquanto lavavam as roupas dos outros, as próprias, passavam a ferro, ou faziam as limpezas nas casas dos "senhores".

No livro "Na terra dos outros" de Manuel Abrantes, faz-se um retrato e relato, bem verdadeiro, sobre essas raparigas, que bem jovens, vieram na província, ao longo de décadas, para trabalhar nas casas das cidades maiores, muitas delas tornando-se alvos fáceis dos desejos dos patrões, dos "senhores", ou, talvez melhor infelicidade, das iras das patroas, as "senhoras", bem explanado pelos tabefes e outras agressões físicas. Por outro lado, basta relembrar também as principais vítimas das cheias de 1967, muitos e muitas, também eles, procurando uma vida melhor, longe da maior pobreza de onde tinham saído. 

Menosprezar estas gentes, que são hoje avós e pais, da geração "mais bem preparada de sempre" que Portugal tem, através do escárnio, e a partir de um cantor de música ligeira portuguesa, é menosprezar quem vota. Esses mesmos que, sendo iletrados, são os que conferem Poder a todos aqueles que os olham de alto, protegidos pelo seu privilégio, conferindo-lhes a adjetivação que bem conhecemos. 

Marco Paulo, por sua vez, apenas queria cantar para um publico que, realmente, lhe conferiu um epíteto de ídolo. Fossem mais mulheres e menos homens, aquele que nasceu no Alentejo, que tinha Amália como devoção, que adorava a mãe mais que tudo, que não recebeu, talvez, o carinho e apoio de um pai que o via "diferente". Marco Paulo, ou João Simão da Silva, de quem a vida privada pouco se conheceu, e a que se sabia, ainda alimentou algumas histórias e polémicas, como acontece com todos aqueles que chegam à primeira linha de fama real. Marco Paulo, aquele que, amado por milhares, detestado por alguns poucos, com feitio irascível que o "stardom" lhe conferia, e que ainda terá servido de inspiração a um Tony Silva de Herman José.

Aquele Marco Paulo, das sopeiras e donas de casa, de todos os jovens nascidos entre 70 e 80, e também inícios de 90, que o cantavam em karaokes e festas de aniversário nas garagens, a par de Prince, ou mais tarde Nirvana. O Marco Paulo do "sempre que brilha o sol", "eu tenho dois amores", "uma lady na mesa, uma louca na cama", aquele que será recordado por muitos mais anos do que qualquer um dos novos "grandes" nomes da música nacional. 

Aquele que representa, senão uma geração, toda uma classe social, de acordo com os entendidos da cultura portuguesa. Aquela gente que, na verdade, não sabe nada, de nada. 


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Thursday, October 24, 2024

Ninguém perguntou nada, mas a periferia não é um grande bairro social
October 24, 20240 Comments

Eu sei que ninguém me perguntou nada. E que a minha opinião valerá zero, embora habitante de uma antiga vila-tornada cidade dos arredores de Lisboa, desde há 40 anos. Ou seja, desde que nasci. 

Mas a verdade é que a periferia da capital não é um grande bairro social, tal como o Porto, caracterizado pelos seus bairros tão pitorescos e típicos, não pode ser identificado como uma cidade perigosa - pese os locais, até há uns tempos, completamente impossíveis de penetrar. A exemplo, o "Morro da Pena Ventosa" (o bairro da Sé), tão bem descrito por Rui Couceiro, no livro com o mesmo título.

Ainda assim, é com profundo espanto (e revolta!) que desde a pandemia, vejo, sempre que há "problemas", apelidarem-se as cidades dos arredores de Lisboa, que perfazem a grande área metropolitana da cidade, bairros sociais. Deixa de haver Benfica, Carnaxide, Alfragide, Queluz, Massamá, Cacém, até ao limite que a Serra de Sintra com os seus belos palacetes, impõe. 



Nos últimos dias, a Cova da Moura, bairro social problemático (sim!), torna-se a Amadora por inteiro. O Bairro do Zambujal (paredes meias com a Buraca e de onde tantos marchantes saem ultimamente para desfilar no 13 de junho na Avenida da Liberdade, na avenida das "lojas PARA ricos", -  também ele problemático, mas onde se localizam várias instituições estatais, como o Laboratório Nacional de Energia e Geologia, a Agência Portuguesa do Ambiente e quase quase, o Estado Maior das Força Aérea), torna-se apenas Alfragide. 

Já passado o estigma de "cidades dormitório", muitas delas que se desenvolveram com educação, cultura, comércio (não apenas o de vão de escada), veem-se, ou, "sentem-se", novamente, no olho do furacão. Quando se colocam todos os bairros, todas as pessoas no mesmo saco - porque para a maior parte dos comentadores políticos e não só somos apenas trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, do comércio a retalho, de cafés, e não licenciados, pós-graduados, doutorados, cujos preços das habitações atiram ou mantêm-nos nas mesmas localidades que nos viram crescer -, não há forma de voltar atrás. 

Quando, após 1974, as políticas de receber os imigrantes vindos das ex-colónias (falamos de negros e não de "retornados") falham a toda a ordem, esperamos o quê? Quando não existe integração, quando existe ostracismo, quando existe desconfiança, pobreza, construção de bairros ilegais, esperamos o quê? Quando as escolas não fazem o seu papel vigilante às crianças que sabem estar em "risco", quando não há - porque não se quer - empenho, quando os pais dos outros alunos os proíbem de brincar, de conviver com os colegas "pretos", estamos à espera do quê? Quando temos polícias cada vez mais jovens, muitos deles vindos também de bairros sociais, de famílias destruturadas e muitos vítimas de igual violência, com acesso a armas de fogo e com sangue quente na guelra, sendo colocados, exatamente, nas esquadras destes mesmos bairros, estamos à espera do quê? 

Mas o essencial seria começar a perceber, de forma mais definitiva, e sabendo que a comunicação social apresenta muita culpa nesta questão, não, os arredores não são um bairro social gigante, no qual, a partir de agora (e como vi ainda hoje na Rua Elias Garcia em Queluz), a polícia tem todo o "pequeno poder" de fazer o que quer, nomeadamente, a quem não paute pelo privilégio da cor branca da pele. 

Porque além de um problema social, enraizado ao final de 50 anos, temos um problema racial, que nunca foi apagado. Tal como há 600 anos atrás se achava que éramos donos de parte do mundo e das pessoas que nele habitavam, o mesmo aconteceu há 50 anos, quando tantos ainda achavam que os negros e negras eram propriedade, eram escravos, pese a abolição em Portugal (tardia) em 1869 "em espaço controlado pelo Império Português", tal como hoje, há quem jure a pés juntos que são todos para voltar à terra deles - exato. Porque temos muitas pessoas, brancas, que estejam com vontade de acartar sacos de cimento, vigas de betão, trabalhar nas limpezas, nas estufas, e a ganhar menos que o salário mínimo. Esperem. Sim, há quem ache que os portugueses de "bem", brancos, repito!, que vivem no tal bairro social gigante, dormitório, são todos pobrezinhos, sem habilitações literárias, e que podem fazer esses serviços. Podemos. Não me cairiam os parentes na lama. Mas não foi para isso que haja quem tenha feito sacrifícios para que eu estudasse, para que outras pessoas da minha geração estudassem. 

Não há porque generalizar, mas generaliza-se. E sim, tem de haver justiça, porque a descriminação existe também, demasiada até. E sim, a revolta vai num crescendo, e começa a ultrapassar as fronteiras e fossos dentro dos bairros sociais, passando para as cidades que os acolhem, entrando pelas casas de todos os quantos habitam nas cidades dormitório. 

E sim, é preciso cuidado, porque a paciência de uns não é a paciência de outros, porque a escala social vai-se desgastando e perdendo, porque nem todos podemos morar, como tanto tenho ouvido, em Campo de Ourique, ou no Parque das Nações, ou em condomínios fechados. Todos somos pessoas reais, todos pagamos impostos, podendo ser utilizadores de transportes públicos, cada vez mais insustentáveis e com uma péssima gestão, ou de veículos automóvel privados e individuais. Por isso não, não pensem que tudo é bairro social, porque o próprio conceito, se estivéssemos num mundo ideal, correto, justo, nem deveria existir, 

Pobres daqueles que vivem em unicórnios dourados e que não sabem NADA da vida além das suas bolhas de proteção. 


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Tuesday, October 08, 2024

Histórias, livros, distopias e outras realidades absurdas
October 08, 20240 Comments

Tenho este título guardado em formato rascunho desde julho. Na realidade nem me consigo lembrar da razão para tal nome, mas presumo que esteja relacionado com a quantidade de informação visual que me teria passado pelos olhos até então. De notícias de guerra, cenários de horror que, inicialmente justificáveis, ao final de 1 ano, de anos, não se podem já assim considerar. De livros, alguns que se revelam tão distópicos, mas que de tanta realidade são feitos. Designados de forma abjeta por romances, mas com aquela realidade poética, das que nos entram pela casa dentro, pela vivência dos dias. Gosto do realismo da vida - e mesmo que seja em forma de livro.

Ah, mas assim tu não vives! - Quem disse?

Contudo, é sério quererem mesmo que se viva este mundo em convulsão constante, qual vulcão sempre prestes a explodir em escoadas que não serão básicas, mas sim ácidas, com nuvens piroclásticas que nos deixarão, a todos, com os corpos fossilizados de Pompeia? 

Talvez a descrição seja exagerada - mas quando hoje, uma vez mais, se constata que o futuro da liberdade de expressão na comunicação social (e não apenas), poderá estar ameaçado, ou quando a escalada de notícias falsas começa a ser um ataque direto ao conhecimento científico, a sensação que tenho é de uma profunda regressão, um retrocesso à idade média. Só nos falta deixar de tomar banho para que seja praticamente idêntico.

Claro que muitos irão ler isto, alguns, já me o disseram, chamar-me-ão de preconceituosa ao ter uma ideia preconcebida dos preconceitos dos outros (lá está, a minha experiência é o que é, e como tal, é naquilo que valido a minha opinião e consideração dos demais), outros de "privilegiada branca, da esquerdalha radical". Confesso que esta expressão/adjetivo é algo que me deixa .... é isso, que me deixa. Porque embora, claramente, me aproxime de uma ideologia de liberdade, de manifestação de opinião, de inclusão social, radical não sou certamente - até porque radicalismos, expliquei em tempos num vídeo, tanto servem interesses de esquerda como direita. Não há diferença alguma entre a Venezuela e a China, ou a Rússia, ou a Argentina, ou o que virá a acontecer a vários países dentro da região europeia. 

Assim sendo, pergunto, continua a ser verdade que eu não viva? Não, esperem, eu não vivo é conforme o que os outros gostariam que eu vivesse - que fosse mais obediente, mais calada (ou menos histérica), que fosse mais caseira (e, preferencialmente com a vida "organizada" aka, casada e com filhos, porque aos 40 anos, já vou para um útero seco e encarquilhado). Mas infelizmente, para esses e essas, o corpo é meu, as escolhas, várias, são minhas também.

E por falar em escolhas, falemos em "tempos". Timings. Aqueles momentos em que poderíamos ou podemos, aproveitar, para fazer, para atuar, para falar, para estarmos calados. Aquele preciso segundo ou minuto, que podemos mudar (quase) tudo. Como no anúncio. Primeiro, saberemos identificá-los? Eu confesso que para coisas "banais" não me custa reconhecer, já para aquelas situações laborais, do "espera antes de falar, pensa antes de responder", definitivamente não. Ou melhor, finjo não saber. 

É tão desafiante como ser-se primeiro-ministro nos dias que correm. Ou tentar entender o que determinados partidos pretendem. Ou estar à espera de ficar desempregada porque existirão fusões e outras conjugações (reformulações, acabo de ver/escutar) numa área que ninguém compreende para que serve, ou gosta - energia e recursos geológicos, e como tal, vamos lá reduzir estas despesas extra, começando pelos recibos verdes, verdadeiros ou falsos, oops, estou a lamentar-me e não deveria. 

Uma mulher não chora, nem tem dor no parto, quanto mais queixar-se do mundo laboral. Errata: um jovem, um homem, uma mulher, uma jovem, não podem fazê-lo. Numa época em que a saúde mental é tão importante, pede-se cada vez mais, profissionais que, na verdade, tenham mais do que uma licenciatura, mestrado e doutoramento, que seja multifacetado. Sejam então aptos e tenham a possibilidade de trabalhar por 3, ganhando menos do que 1 ganharia. E estejam sempre disponíveis. S E M P R E! Mas uma mulher, não. Não somos tão feministas? Não temos então a força necessária para a resiliência e a capacidade de tratar de vários temas ao mesmo tempo? Sermos mães dos filhos das nossas sogras e mães dos filhos dos filhos das nossas sogras? Capacidade de trabalhar e sermos CEO's, ao mesmo tempo que fazemos as listas de supermercado e pensamos no jantar da noite e almoço para o dia seguinte? Capacidade de estarmos em reuniões, e receber mensagens a explicar como estão os nossos pais, que nos pedem igual atenção? E ainda nos queixamos? Não pode. E se fores a um médico? Uma ajuda psicológica? A sério que ainda tens tempo para ir falar ao divã? Sejas rapaz ou rapariga, com o peso óbvio que cada género atualmente acarreta - menino com o peso do macho alfa, o rapaz da família, aquele que dará continuação à espécie e ao apelido paterno, patriarcado enraizado e masculinidade tóxica, menina com o peso da fêmea frágil, a continuidade da espécie HUMANA (não tanto familiar), a que será mulher e mulher de alguém, antes que se corrija para o "esposa", a dona de casa, a MÃE. Os valores tradicionais rotulados num azul e num cor de rosa, que sim, continuam a ser usados. 

E lá vem a ladainha "woke". A da radical de esquerda, certamente amantizada com algum bloquista (ou alguma), aquela que merecia ser violada por um estrangeiro qualquer (isto ameaçado por portugueses brancos, adoradores do tempo em que as mulheres eram rainhas da cozinha, via rede social).

E sim, estamos, com isto, em realidades absurdas, onde as cidades vão perdendo os seus habitantes, sendo substituídos por turistas e nómadas digitais, onde o ódio que se vive atrás de écrans, mas também no dia a dia, a falta de paciência absoluta, de empatia, de respeito, de educação, de entendimento que à escala geopolítica algumas coisas não podem ser tidas como branco ou preto, muito menos quando (não se quer) conhecer a História. Realidade absurdas que poderiam parecer em tempos idos distopias, onde máquinas já fazem o trabalho de pensar pelos humanos, que não querem pegar em enciclopédias, em aprender, em acreditar no que já se esqueceram ter aprendido na escola, preferindo acreditar em meia dúzia de criaturas que acham saber mais do que os outros, quando nunca estudaram nada sobre os assuntos. Contra vacinas, contra tremores de terra, contra ciclones, contra escassez de água, contra incêndios, contra alterações climáticas .... contra a Natureza que um dia faz de conta que está contra a Humanidade. 








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Saturday, March 23, 2024

Dor, fé e devoção, para as massas
March 23, 20240 Comments

 


Arrancado aos pedaços, com boas doses de música ambiente dançante, numa discoteca privada apenas aos presentes. Precedido com uma introdução da australiana-fixada em Brighton, no sul de Inglaterra, Suzie Stapleton, mostrando, uma vez mais, o poder da guitarra no feminino. Cortinas para baixo, em escassos minutos de atraso. 

Para quem sempre se acostumou a estar sentada, confortavelmente, nos balcões laterais, vendo tudo por um canudo, ou tendo de ampliar ecrãs de telemóvel, aquelas 3 horas e meia em pé, bem mais perto do palco do que inicialmente tinha consciência, foram surpreendentes - e esta palavra não serve, nem justifica o sentimento. Desde o momento em que chego à fila, já de si longa para um "Golden Circle" que, afinal, era tudo menos isso, até que arredei pé do local onde me fixei, tudo me parece, ainda, ao dia de hoje, simplesmente, surreal. 

O M de Memento Mori, ou do que quisermos inventar nas nossas teorias da conspiração perversas, enche o palco, relativamente mais pequeno ao que certamente, costuma passar por outras cidades. Mais baixo, de acordo com a plateia multinacional, o que rareia a vista, nomeadamente quando os braços se elevam para gravar tudo o que acontece. 
Primeiros acordes, numa banda que, passados tantos anos, após um ALIVE que não era para ela, retorna a Portugal. E se me é permitido, que estava, honestamente, "receosa" do que poderia de nós receber.





Sendo que o jornalismo se quer isento, aviso que este texto, é um artigo de opinião. De isenção pouco terá. Sim, poderá ser um texto enviesado para muitos, mas quem esteve onde eu estive desta vez, e não nos tais balcões, onde, há quem diga, pouca emoção se fez sentir, entenderá que, apesar do cansaço físico, óbvio e visível, as vozes estiveram impecáveis, a força e energia de entrega também, pese os já tradicionais problemas de som de um "pavilhão atlântico" que nunca os conseguiu superar. Nem, alguma vez, irá.

O M estava com caveiras, vermelho. Óbvios registos do tema que deu início à noite incrível que Depeche Mode trouxe a Lisboa. E não, não revisito a lista de canções tocadas, simplesmente porque pouco me importou. Estava a vê-los e a "tê-los" a escassos metros. Tudo o resto deixa de ter importância, ou fazer grande sentido.

Pelo fim. Diz, quem foi, diz quem foi a todos os concertos da banda em Portugal (e uns tantos lá fora), que, a noite de 19 de março, só foi comparável com a Devotional Tour, quando a banda inglesa passou por Alvalade a 11 de julho de 1993. Não sei, mas tenho de acreditar. Só comecei a seguir o percurso, na altura, atribulado, a partir de 1997.

Mas "há dias", tudo estava perfeito. Tudo foi perfeito. Nomeadamente a energia do público. E como energia gera mais energia, o que se dá, recebe-se em troca a triplicar. E esse, foi o quebra gelo para uns senhores, que no auge da sua idade, experiência e respeito que lhes é devido, conseguem transformar a dor, em fé e devoção para uma massa humana, que encheu até ao máximo o espaço escolhido. Foi esse o momento em que o receio de entrar em diálogo, ainda que escasso, com a plateia, se dissipasse. A partir dessa altura, dar e receber, de lado a lado, foram totais.

Não posso refletir no que lhes passaria pela cabeça. Poderia entender que o físico, de todos os que lá estavam, já pesa (sim, nos meus 40 anos, não posso esperar sentir o corpinho como quando tinha os meus 23 anos). Mas posso garantir que a experiência foi orgásmica. Passo a explicar: aquele instante em que se atinge o êxtase, em que se chora, em que não sabemos em que terra estamos. Para mim foi assim, mas compreendi que para tantos outros, foi similar. 
Uma vez mais, é uma opinião pessoal. Não é coletiva. 

Desde a tímida homenagem a Fletcher, aquela criatura tão querida por todos, mas cujo desaparecimento fez crescer uma proximidade entre Martin e David, como há muito não se conhecia, nem via. Estaria ele presente? Certamente que sim. Fiquei no lado onde o "clapping hand man" costumava estar. Quem dera que ele lá continuasse, para dizer adeus a todos, volta e meia, e tocar num tecla apenas, outra meia volta depois. Mas a sua falta, acaba por ser uma resposta ao deus no qual Martin tanto acredita. Tornou os amigos coesos. As famílias mais próximas. Momento Mori - lembra-te que vais morrer. E daqui, não levas nada a não ser estes instantes. 

A emoção pode ter sido resultante, também, aos temas que mais me tocam, aqueles que mexem claramente com a minha psique, que me fizeram a mulher em que hoje me tornei, e que me garantem a sanidade em vários momentos. E, claro, a um trabalho de braços incrível e essencial para quem lá vai, e sabe AO QUE vai, e fica para os encores. Não há forma de explicar a sensação. Enquanto vejo Dave a obrigar-nos a um exercício físico que sabemos bem que temos de fazer, e me vejo, aliás, NOS vejo, a todos, à arena em uníssono de coros e braços levantados, não há hipótese. É um momento de sacramento, em perfeita sincronia, como quem vai à missa a comer o corpo de Cristo. É um momento de dor, é um momento de devoção. Pura precisão. 

Foram duas horas e 15 minutos em palco, mais tempo do que nos últimos concertos. Foram mais de 100 espetáculos até agora concretizados, desde o início da digressão. E acho que, qualquer um de nós, mesmo "mortos", ainda assim, bem vivos, de dores e cansaço, ficaríamos, à vontade para mais duas horas. Para mais uma vida inteira ao serviço dos mestres, tímidos nas conversas, proprietários na música.

A cara de David, bem no final do espetáculo disse tudo, segundos antes de sair, definitivamente, do palco. Quem esteve sabe também. E era pura alegria. Não há outra palavra que sirva. Até mesmo, digo, seria desnecessária. 

Agora? É apreciar o silêncio, com a alma cheia. 




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