Cláudia Paiva Silva

Wednesday, May 21, 2025

new day, new rules
May 21, 20250 Comments




"Boa tarde. Sou branca e privilegiada por tal; contudo moro na região suburbana, Cacém."

"Boa tarde. Sou negra e, por conseguinte, não tenho as mesmas oportunidades laborais que as outras pessoas; contudo, moro dentro da cidade, em Campo de Ourique."

Era assim que todos os nossos currículos deveriam começar - ou era assim que muitas pessoas gostariam que as cartas de motivação e currículos começassem. Como se o nosso fenotipo ou a nossa classe social, ou localidade de morada, resumissem de forma muito mais clara aquilo que é o nosso caminho profissional, as nossas capacidades e não, nunca, uma questão de mérito ou experiência. 

Mas nada de pânico, é um dia novo e teremos, certamente, novas regras que nos irão guiar, tal como "um farol que nos ilumina a direção" (entendedores não distraídos, entenderão).

Poderia escrever hoje sobre tantas coisas: a "bola", as "canções" e a "política" - tudo o que foi o mais importante durante o fim-de-semana, que se sentiu, certamente, ainda mais pequeno para tanta emoção, revolta e reviravolta. Mas, acredito, que tudo esteja relacionado: desde Israel quase ter ganho a Eurovisão (porque não a Suiça, já que se diz tão isenta de tudo, até de países que praticam crimes contra a Humanidade - tendo estes sentido na pele o que é ser-se "eliminado" - ironias e paradoxos), aos resultados eleitorais em Portugal, que seguem a tendência da nova ordem mundial. 

Dizem alguns próximos que eu agora deveria estar mais calada, mais sossegada, não me expôr tanto (ainda por cima quando começo a figurar em alguns programas televisivos, também com temas bastante fraturantes na sociedade). Que devo evitar conflitos ou entrar em provocações - se algumas pessoas são boçais, eu não tenho de o ser - mas, questiono, tenho mesmo de me calar quando leio e escuto barbaridades baseadas em mentiras? Ou apenas em "sensações"? "Ah, há mais imigrantes, logo, há mais criminalidade", "Ah, defende-se uma religião/religiões que desprezam as mulheres, que devem ser protegidas pelos homens lusos"; protegidas de quem mesmo?? Ah pois, dos próprios homens lusos. "Vêm para aqui, alguns para trabalhar, outros para vadearem. Mas andam também a roubar os nossos empregos!", quais? aqueles que ninguém quer fazer ou gosta, porque alancar com os costados a trabalhar na terra e estufas não é para os verdadeiros subsídio-dependentes nacionais, ou como agora se diz "portugueses originários"?? Também temos a cantilena do "wokismo" - que a agenda woke é isto e aquilo e coloca em perigo as novas gerações. A sério? Eu achava que quem fazia isso eram os mesmos do costume. Tarados, pedófilos, que estão tantas vezes dentro das próprias famílias próximas, como nas escolas, na vizinhança - aquele senhor(a) que é tão simpático, que tem 2 netinhos; ou a falta de cuidado e de educação (de querer educar e estar presente) na vida dos filhos, invés de lhes colocarem aparelhos eletrónicos à frente, onde, claro, irão procurar e beber tudo o que é do mais tóxico possível, preenchendo vazios emocionais, de forma manipulada. Não. São livros que fazem a diferença, são as aulas de cidadania, ou as ações sobre sexualidade. É a distribuição gratuita de produtos de higiene feminina, de pílulas ou preservativos em contexto de boas práticas de saúde. Tudo é para terminar - tudo faz parte de uma ideologia político-partidária, e não de um conjunto de regras mínimas sociais, perante um mundo em transformação a um passo tão mais acelerado do que aquilo que eu, até eu, que me julgava jovem e desempoeirada, teria alguma vez sonhado.

Contudo, sonhei com o novo dia, das novas regras. Sabem, é que ser "woke" não é, então de agora - uma palavra que caiu no goto, logo após uma pandemia real, que colocou as pessoas ainda mais intolerantes. A exemplo, outra palavra e definição que é fortemente punida, associada a, uma vez mais, regimes políticos: feminismo. 

O movimento sufragista, entre outras ações, permitiu às mulheres o direito ao voto. Em Portugal, foi preciso o 25 de abril de 1974 para se tornar um direito pleno - e ainda hoje, há quem diga a pés juntos que "as mulheres, um dia, vão voltar a ser impedidas de votar" (grupo 1143, há poucos dias, as sua pocilga no X). Fora outras palavras tão bonitas proferidas pelo grande homem lusitano e branco que tanto gosta de ameçar com violações as... feministas, pois claro.

Se assim é, sou "woke" desde os 12 anos, quando li, ora então, um livro que falava exatamente da forma como algumas facções do médio oriente, tratavam as mulheres. Estamos a brincar certo?? Não preciso que me digam o que é correto e errado. 

Tenho 42 anos e 30 deles têm sido feitos de alertas e ativismo. Portanto, agradeço o conselho, mas não me calam.


Mas estou a derivar - poderia também escrever um texto sobre a sociologia por detrás dos eleitores da nova 2ª força política em Portugal. Não, já não são os grunhos nacionalistas (que, coitados, nem o são, porque se fossem, era para o Ergue-te e ADN que dirigiam o sufrágio), é gente formada, pensante, que anda connosco nos transportes, e senta-se conosco em jantares ou almoços de família. É malta revoltada e triste, que quer mudanças, e, no fundo, também pensa tudo o que referi acima. E embora tente compreender (já que aceitar, não aceito - e não me dói mais nem menos por isso), não consigo. Porque o boletim de voto não tinha apenas 3 partidos em coligação ou não. Tinha quase 20. E decidiram votar no mais fácil, naquele que é mais populista, naquele que mais mentiras também vai partilhando, floreando as palavras com meias-verdades, apelando ao que é mais rústico e pessoal de cada um de nós. E assim vai o circo. E somos todos palhaços e espectadores que deveriam estar preocupados com as eventuais mudanças à Constituição, as eventuais alterações aos direitos e liberdades, do coletivo e individuais. E não deve faltar muito. Porque não se quer estabilidade política alguma, enquando a 2ª força, não se tornar 1ª. E aí, acho bem que os nossos currículos comecem por descrever a nossa cor de pele, a nossa orientação sexual, o nosso género, os nossos gostos literários, televisivos, políticos. E quando isso acontecer, não chorem. Não interroguem como foi possível. Até porque nem eu acredito que alguém faça isso. Pessoas inteligentes sabem ao que vão. Parabéns a todos.

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Tuesday, April 29, 2025

dos dias longos
April 29, 20250 Comments

Há precisamente 24 horas, Portugal, Espanha e alguns outros países europeus, simplesmente, pararam. A eletricidade, a energia fundamental que o ser humano precisa para o seu dia a dia, cessou. E muitas serão, certamente, as teorias de conspiração, mais ou menos corretas, que poderão justificar o acontecimento. Contudo, algo parece ser certo - no momento em que Espanha exportava (ou transferia) energia para França e Portugal, houve um pico seguido de uma quebra - quebra essa que fez disparar todos os alarmes e sistemas disponíveis, cortando de imediado o acesso das várias redes elétricas. 

Justificações à parte - Portugal recuperou tardiamente, porque só depois viemos a verificar que, afinal, a barragem de Castelo de Bode precisou de entrar em funcionamento, bem como algumas centrais termoelétricas que estavam em modo OFF - tarde, mas recuperou. 

Embora muitos possam dar os parabéns aos excelentes técnicos nacionais e estrangeiros que "trataram" do assunto, devo dizer que, enquanto cidadã, não me sinto minimamente contente, nem feliz, nem irei afirmar que "correu tudo bem". Obviamente que a Proteção Civil, Bombeiros e outras instituições, como a PSP, GNR, INEM, etc, fizeram o que podiam, com o pouco que também tinham. Mas o governo, como de costume, falhou redondamente. 

Portugal é um país completamente impreparado para qualquer evento mais robusto que possa ocorrer de forma negativa. Os portugueses, por muitos avisos, não sabem o que é um kit de emergência, e acreditam que, mesmo o tendo, mais vale ir a correr, comprar tudo o que precisam e não precisam às grandes superfícies - quero apenas ver e saber, as toneladas de comida que serão descartadas nas próximas semanas porque, afinal, "foi um exagero". 

(Gostava de saber, também, de onde, afinal, vem o dinheiro, de que todos se queixam em NÃO ter. Para o que se viu ontem, certamente que alguma coisa deve, afinal, permanecer nas contas bancárias, porque de outra forma, e pelo preço dos alimentos, não se deve ter gasto menos de 200 euros por cada carrinho cheio.) 

Não, Portugal não está preparado, Portugal não sabe lidar, o governo, seja de que facção política for, nunca saberá orientar-se - muito menos quando falha o que é o mais essencial: luz e água à população. LUZ, no sentido transversal, no qual nem redes móveis funcionaram grande parte do dia, para grande parte das pessoas (ao contrário do que muitas aventesmas dizem). Quando ninguém sabia o que estava a acontecer e, facilmente foi, começarem as grandes histórias, desde ciberataques, ao início de uma nova grande (e diferente) guerra, a fenómenos atmosféricos. Tudo o que poderia ter sido evitado se os comunicados oficiais tivessem sido transmitidos por esse meio incrível e (para tantos) arcaico, que é a rádio. Esquecem que o 25 de abril deu-se através de senhas passadas pela rádio. Esquecem-se que nas guerras, as notícias são transmitidas via rádio. Ondas de som que atravessam o tempo e espaço, ao ponto de serem escutadas nos confins do universo que nós conhecemos. 

Mas não, Portugal nem sabe fazer as coisas de forma a evitar-se qualquer pânico. Portugal enquanto governo, Portugal enquanto populaça que assalta desalmadamente prateleiras de qualquer coisa - qualquer coisa, que lhes possa parecer essencial.

Essencial é ter a sabedoria de esperar, de não empatar a vida dos outros, de não querer tudo para si - poderíamos ter aprendido algo com a pandemia, mas não aprendemos nada - pelo contrário. Aprendeu-se a negar tudo: a pandemia, a ciência, a tecnologia. As pessoas - começámos a negar as pessoas válidas e que têm conhecimento.

Ainda assim, ontem, vimos novamente miúdos a brincar nas ruas até bem tarde, enquanto vizinhos falavam uns com os outros, possivelmente, muitos, pela primeira vez em vários anos a habitar o mesmo prédio. Mas Portugal, hoje, já se esqueceu. E a Europa, HOJE, vai continuar a consumir recursos energéticos como se não houvesse amanhã - e o irónico, é que acabámos de verificar que pode mesmo NÃO HAVER amanhã. 

Não, não estamos preparados e continuaremos incapacitados em sermos independentes, em termos uma mini soberania energética, só ela possível de se afirmar, em momentos como este (e sim, graças a alguns técnicos - que nem todos certamente são incompetentes). Não há gestão de nada. Não se sabe como fazer. E ainda assim, uma vez mais, bato palmas a todos os que conseguiram manter a ordem pública. Num dia em que tudo poderia ter corrido mal, não ouvi falar em crimes, em mortes, em acidentes. Para aqueles que afirmaram que houve o caos, que tenham provas antes de aparecerem nas televisões a grunhir. As pessoas, embora sem acessos, ainda sabem como se comportar, sejam de que nacionalidade for. E mais, a todos aqueles que, também, afirmam a desgraça da imigração - foi essa imigração que ontem safou muitas pessoas, em muitas localidades, quando os supermercados eram tomados. 

Há muito aqui em que pensar - há muita confusão aqui instalada, mas ainda bem que nestes dias longos, a luz natural se estende até mais tarde. Se isto for o fim do mundo, num mundo de privilégios, que seja em paz. 

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Monday, April 21, 2025

páscoa ou o que resta dela
April 21, 20250 Comments
Michelangelo Merisi, ou Caravaggio (Milão 1571 - Porto Ercole 1610), A Deposição de Cristo (1600-1604)

Depois de um momento a refletir o carnaval - a festa pagã, mitológica, cristã, que desprende os corpos das almas, incendiando tudo o que é devasso e travesso à vida mundana, quase a cair num fogo eterno de excessos que, mais cedo ou mais tarde, irão pautar pelo enjoo e ridículo, entra-se no momento de reflexão. Como também esclarecido. 

E é engraçado, não menos irónico e, como tal, perturbador, escrever este texto alusivo ao momento de recolhimento, de auto-pensamento, no dia em que um homem maior, tão político quanto Cristo e, por esse mesmo motivo, tão real e humano, morre. A última luz ao fundo do túnel. O único Papa que me fez percorrer parte da cidade apenas para um vislumbre, quase como uma coincidência que acredito não ter sido tão coincidente assim. Francisco. Apenas.

O universo também se move de formas misterioresas, tal como os desígnios de deus, para quem nele acredita. 

A Páscoa, o momento de ter fé, de acreditar, mais do que nada, na ressureição, ou na mudança da carne em espírito. E, não deixa de ser, igualmente paradoxal a verdade do tema: sem qualquer espécie de dúvida perante deus, como podemos nós acreditar sequer em algo? O filme Conclave tem uma passagem destas. O filme Dúvida, tem outra similar. 

Enquanto cá estamos, neste plano, nesta terra, podemos apenas esforçarmo-nos pelo melhor, pelo bem maior, pela empatia, pela sinceridade, não desejando nada em troca, embora, no fundo, todos queiramos que nos aconteça algo extraordinariamente bom. E, embora nos esqueçamos logo de seguida, que seja plausível de uma causa-efeito, ao que foi praticado. 

Num fundo todos somos crentes em algo. Na Humanidade, na Ciência, em Deuses (geralmente cometendo os piores dos crimes em seu nome). 

E eu tenho fé no Homem. Sabendo que todos os dias somos brutalmente atacados por desilusão, por negatividade, pela toxicidade que largamos aqui e ali e além. Conhecemos o bom e o mau, sabemos que existem e sabemos ter ambos dentro de nós. 

Por isso, aqui chegados, olho para trás. Sou obrigada a olhar para trás na minha vida e ver o que posso ter conquistado e olhar em frente e ver onde ainda queria chegar. Mas o importante é não estar parado, sair do lugar, ter iniciativa, ler, aprender, questionar, tudo e todos. Não somos nada. Apenas pó de estrelas, eletrões e moléculas orgânicas que alimentam um ciclo eterno. A vida eterna. 

E, quer queira ou não, estou grata pelos ganhos, nem sempre em boa hora, como quero ou desejo. O caminho faz-se caminhando. 

Que todos, todos, TODOS, encontrem o seu, mesmo nos dias mais tenebrosos que agora vivemos. 

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Sunday, March 09, 2025

não tanto amor assim
March 09, 20250 Comments


Pintura: Leo Dorfner

O testemunho de hoje chega após leituras influenciadoras. Todas elas com um ponto em comum: o amor, a paixão, o que prevalece mais, o que é mais importante no relacionamento. Terminando, não raramente e não menos de forma coincidente com: a paixão acaba rápido (não mais do que X número de meses, vá, 1 ano, "top"), mas o amor, ah, o AMOR, esse vai-se construindo ao longo de uma vida. 

O problema é quando esse amor todo vira amizade e as pessoas ficam juntas por uma questão de hábito. Vou agora sair de uma relação que dura anos, só porque já não há faísca (paixão?), ou prefiro manter-me confortável? Afinal tenho casa, estou estável e equilibrado(a) financeiramente, não há lugar a discussões. Mas poderá haver margem para um maior distanciamento, e para uma outra pessoa, uma terceira pessoa - que embora não aqueça nem arrefeça, poderá trazer o confronto da realidade que, no fundo, já se adivinhava.

Não sou especialista na matéria. Nem tão pouco tenho qualquer moral para fazer juízos de valor - apenas acho que o cerne da questão não passa pelo casal, mas sim, pelo individual. Não que acredite que as relações agora devam ser egoístas - nada disso. Mas numa situação destas, o que sentimos, por nós mesmos, deveriam contar mais. O problema é quando já não há tanto amor assim. Nem pelo outro, e, no final do dia, nem por nós. 

Haveríamos de almejar mais - faz parte do ser humano também. Outro artigo que li. A sobreviência da espécie fez-se e continua a fazer-se, com o nosso crescimento enquanto criadores, enquanto hábeis no fazer e evoluir. E isso pode ser feito a dois, claro - mas quantas vezes um quer, e o outro prefere a monotonia do espaço-temporal? Deverá alguém abdicar? Sempre ouvi dizer que no amor (e aqui esqueçam, ainda, a paixão) não é uma questão de abdicação, mas sim uma questão de adaptação, ouvir e compreender o outro, as suas necessidades e expectativas. E BANG!, outro pequeno apontamento que acho relevante: as expectativas. 

Pintura: Leo Dorfner

A maioria das relações pauta pela expectativa que temos em relação ao outro e, no fundo, em relação a nós: vestimo-nos de determinada forma para agradar, colocamos determinado perfume para agradar, passamos o tempo a pensar do que o outro(a) pensa de nós. E, principalmente, de forma errada, projetamos no outro o que gostaríamos que a nossa vida pudesse vir a ser. Vejamos, e isto acontece sempre no início de qualquer relacionamento amoroso: ainda nem sequer conhecemos a pessoa, e já estamos a imaginar uma série de coisas para um futuro que ainda nem sabemos se algum dia poderá realmente acontecer. O grau de projeção, expectativa e ansiedade tornam-se brutais, mas, graças às hormonas, apenas temos sintomas típicos de quem esteja apaixonado, embora pense em algo mais. 

Não tanto amor assim no início, mas não tanto amor assim quando as relações também se revelam, digamos, perigosas.

Falemos de paixão. Não estou de modas, paixão para mim é sexo, luxúria, desejo, provocação, sensualidade, erotismo. That's that. A paixão é definitavamente o extremo da coisa. O que nos faz ir em frente, mesmo sabendo que vamos bater no rail de proteção. E, no entanto, não vejo melhor exemplo para paixão do que aquela que está irremediavelmente associada a questões sociais, a ativismo político, também.

Uma paixão destas leva à cegueira, sem dúvida alguma - pessoas que se tornam mártires pela "causa". E isso acontece também nos relacionamentos humanos, pensemos, monogâmicos. Os relacionamentos tóxicos, sobretudo. Os relacionamentos onde pauta sempre um laivo de violência, seja psicológica, fisica, verbal. E há sempre um lado mais fraco. Fraco. Frágil. Sempre um lado que não deveria ter adjetivação, muito menos a de "vítima", ou "sobrevivente". Mas pior ainda será o de "resignado". Mulheres e homens que passam uma vida quase inteira à espera de terem um suspiro de alívio, geralmente quando o outro morre, podendo finalmente perceber o que seria terem vivido em paz. O que leva a aguentar uma situação destas? A tal adaptação que mencionei? A fé cega, talvez derivada da paixão, de que vai haver uma mudança de padrão, de comportamento? 

Pintura: Leo Dorfner


Continuo a debater-me com algumas questões que não terão resposta. Cada caso é um caso e, no momento, existe um peso social muitíssimo maior do que se julga. Quando vemos que está tudo errado e, mesmo assim, não somos nós a sair, a largar (porque existe também a ameaça velada ou direta do "não comigo, nunca contigo", algo como "se não és minha/meu, não és de mais ninguém"), que resta do amor próprio? 

Talvez seja melhor, então, estarmos sozinhos uma vida, não?, podem-me perguntar. Não penso assim, mas não tenho uma resposta ideal. Acho que há (ainda) esperança para que tudo dê certo, embora essa coisa dos finais felizes, sejam algo que dê imenso trabalho, todos os dias. E nem todos temos a oportunidade e paciência para mais uma responsabilidade dessas.

É uma responsabilidade sim. A nossa felicidade. 


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Sunday, February 16, 2025

A volta do tempo
February 16, 20250 Comments
Luta entre o Carnaval e a Quaresma. Pieter Bruegel, 1559, Óleo sobre Tela, Kunsthistorisches Museum de Viena

Tradição, raízes, cultura, simbolismo, manifestação, mas também excesso, festa, inverso, pecado. O Carnaval, carnem levare (remover ou retirar a carne, numa analogia ao período de jejum que se aproxima), tem origens, como antes dito, pagãs - ideais de fertilidade, de primavera, da passagem de inverno para verão, a transformação dos dias, das paisagens, da rotatividade das culturas. Contudo, a inversão do tempo, a passagem, por exemplo, do tempo astronómico a sul do equador, também auxiliam à caracterização de um período que se repete, desde há largos milhares de anos. A conotação religiosa, de tendência cristã, é definitivamente "recente". Sem nunca apagar a perceção real do que significa ser-se "inverso", o carácter associado à Igreja Católica é, por demais, marcado. O perído que antecede a Páscoa, a época da Quaresma, os excessos e luxo que antecedem o período de reclusão, de abstinência. 

Quando visitei o Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras, no passado mês de novembro, desconhecia esta "origem" do Carnaval. Habituada, como muitos portugueses à origem mais folclórica, na qual temos sempre presente a imagens dos caretos, dos chocalhos, dos "avanços" dos homens mascarados às mulheres, num ritual ancestral que evoca a fertilidade, o renascimento, ou a vida sobre a morte, esta questão do "inverso" não fazia parte da minha oratória.

Muitos países, nomeadamente junto ao equador, cuja dicotomia ricos versus pobres é gritante, pairando sempre um sentimento de religiosidade que não é de todo aceitável (pela criminalidade, pelos falha de direitos humanos, pela violência e abuso contra mulheres e crianças), o Carnaval vive-se com especial comoção. Não menciono sequer o Carnaval brasileiro que dispara nas origens culturais mais ou menos associadas ao colonialismo. 

Contudo, é um período onde o homem veste-se de mulher, a mulher de homem, o negro pinta-se de branco e, mesmo atravessando um atual período conturbado na história social mundial, o branco pinta-se de negro, invrertendo papéis, onde não há diferenças. Ou então, onde as há ainda maiores, num momento repetido, anual, no qual a sátria e a crítica, ganham especial importância.

E ainda temos um conceito de luxo que pode e deve ser associado. Como não falar dos sumptuosos Carnavais de Veneza? 

A começar pelo vestuário. "Na Veneza do século XVI, também existiam normas quanto ao vesturário, o seu feitio, corte e material, segundo a respetiva posição social, mas as leis que foram publicadas contra o luxo e a ostentação não eram tão rigorosas na urbe da laguna, onde se faziam deslumbrantes vestidos de brocado de seda, veludo, damasco, musselina e rendas venezianas, os quais criavam tendências de moda que depois abriam caminho até aos paços do Renascimento, como por exemplo, as golas de tufos." Além dos tecidos, as cores usadas também evocam a classe social, índigo e púrpura, por exemplo, seriam os corantes mais caros, aos quais ainda se juntavam no fabrico de peças, fios de ouro, trabalhando-se os bordados e, claro, usando as rendas do decote e punhos. Aliás, os grandes decotes, cobertos pelos véus e rendas, pautavam por um simbolismo de pureza virginal, e, não menos importante, de mistério. 

Já as máscaras têm por origem outra razão. A proteção da doença, feita de melhor o pior forma, ganha predominância logo a seguir à devastação deixada pela Peste. Por outro lado, sabendo que uma tez clara sempre foi sinónimo de classe social elevada, o uso de máscaras ao sair de casa, serviria, essencialmente, para proteger a face dos raios solares.

"O 'Ridotto' em Veneza" - Pietro Longhi, pintor veneziano (1701-1785)

O uso carnavalesco tem outra justificação. O mistério, o não saber quem está por detrás, o anonimato - que fácil é cometer os mais variados pecados quando ninguém sabe quem somos. Era acessório indispensável para os bailes, para as ruas, para o dia-a-dia. A máscara protegia os rostos e fazia desaparecer as diferenças.

Em Veneza a máscara usada pelas mulheres designa-se por moretta, geralmente em formato oval feita de veludo. As máscaras de seda, geralmente negras, eram ricamente decoradas com pérolas ou penas, mas mais simples ou não, faziam parte do ritual.

A esta distância temporal, e quiçá, sensorial, o Carnaval, Entrudo, continua a ser um período exclusivo, com forte teor religioso, mas também, mítico, e onde o pendor de escárnio pautado por forte influência social, é ainda bastante explícito. As diferentes influências constatadas, nomeadamente em Portugal e no Brasil, onde o corso ganha relevância, tal como o período pré-pascal, constituem os percursos cujas raizes continuarão a fazer-se sentir ao longo dos séculos. 

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Saturday, January 11, 2025

Veneza aqui ao lado
January 11, 20250 Comments

                                 Giovanni Antonio Canal, dito Canaletto, "Regatta no Grande Canal"


Existe algo na luz de Veneza que nos parece familiar. Numa terra que hoje está rendida (e vendida) aos interesses enconómicos associados ao turismo de massas, pautadas por bons rendimentos, surpreende ainda quando, pela manhã, os primeiros raios de sol, a primera luminosidade, se acerca dos canais, das fachadas dos edificios, estoicamente construídos sob o mar.

Veneza, cidade que já foi República, controlando o Adriático, sempre pautou pela sumptuosidade. Não era um lugar como os outros. O seu poder extendia-se até Constatinopla, e inlcuia Creta e Chipre, o Império Bizantino respeitava a região. As trocas comerciais, as portas com o Oriente (onde começa, onde termina, afinal?), todos estes fatores, faziam com que a designada "Sereníssima" se destacasse. Não apenas pelos negócios. Mas pelas suas gentes. Famílias abastadas, de origem nobre, o próprio Dux, e o seu Ducado, os palácios construidos, as sedas, os veludos, as obras de arte. 

Até que a sede de Poder, as guerras internas, externas, os conflitos por região e território, a Humanidade a fazer o que melhor sabe, pilhar e destruir, deixaram Veneza perdida. Uma vasta região de pequenas ilhas que poderia ser tomada por qualquer um dos interveninetes bélicos. Viessem de norte, ou de sul, do oriente ou ocidente. A sua independência fortemente abalada. Para sempre perdida. 

É, no entanto, e já num período no qual se poderia avistar o fim, que alguns dos maiores mestres da pintura italiana (mas também europeia) se aproximam da cidade. Muitos deles, chegados por via do "Grand Tour", as viagens que os jovens europeus, provenientes, claro, de famílias titulares, da nobreza ou aristocracia, faziam, por objeto de conhecerem as diferentes capitais, absorvendo cultura, línguas, manejos e costumes. 

Giovanni "Canaletto", Francesco Guardi, Bernardo Belloto, são alguns destes artistas, que se destacam pela grandiosidade do detalhe com que pintam a cidade. Sem nunca deixarem de conservar, como se fosse possível o fazer, os edifícios emblemáticos, pintam e retratam uma sociedade em festividade. 

No Museu Gulbenkian, possível de ser vista até 13 de janeiro, esta próxima segunda feira, a exposição "Veneza em Festa" é a resposta direta ao início deste texto. Mesmo que a sala onde está patente, preserve a solenidade de uma exibição grandiosa, porque não, luxuosa, a luz que emana das obras expostas, é realmente contrastante com o restante contexto. É impossível não ter essa noção de realismo, quando nos lembramos das imagens que conhecemos das gondolas, das pontes, dos emblemas da cidade italiana. 

E, uma vez mais, a abrangência do momento - Veneza, conhecida pelo seu Carnaval, a sua festa de inverso ainda mais extremada, onde mascarados convivem com harlequins, sem sabermos quem é quem, é aqui retratada no Dia da Ascensão, já em pleno momento de primavera, após a celebração da Páscoa, rigorosa, controladora. Sente-se a atmosfera de primeiro calor estival, as cores mais cândidas e vivas, a alegria da chegada do Dux, as fachadas engalanadas. Mas também outros motivos que são conhecidos e indentificados por "vedutismo" - a representação da paisagem urbana, ou ainda, os "capricci", resultado da imaginação de cada autor, podendo conter elementos irreais ao espaço e ao tempo. 

Sim, Veneza está em Lisboa, e consegue-se sentir o séc. XVII. Uma cidade no seu auge e apoteose, qual atriz na sua última cena em palco, aquela que arranca os aplausos do público que estaria ainda ávido por mais. 



Giovanni Antonio Canal, dito Canaletto, «O Grande Canal Visto de San Vio, Veneza»

Francesco Guardi. Detalhe da obra «A Festa da Ascensão na Praça de São Marcos Veneza»



 

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Sunday, January 05, 2025

5/365
January 05, 20250 Comments

 

Existe, claro, algo que acusa uma obra ou objeto ser mais ou menos destacada de entre as demais. A criatividade por detrás da sua construção (da ideia ao real).
Cada um poderá evocar as diferentes opiniões sobre o tema, como ou a forma, ou a capacidade intelectual do ser criativo. Não olvidando, claro, as profícuas sensações de influência ou inspiração. 
É nessa óbvia busca pelo que poderá ser mais original, que nos deparamos com cenários onde o tempo/espaço parecem ter ficado incómules. Parados em imagens de cores que merecem o detalhe de olhar (e que, afinal, não passarão de breves instantes até que tudo mude). 
Observando a paisagem citadina neste início do ano, os tons pálidos ou de quebra de dia solar, sobrepõem-se à urbe. 
Registamos a natureza que ainda se pode ver nestes contrastes, passeamos em jardins construídos para esse propósito de "mentira", mas que nos afasta (quase) do local real onde estamos situados, numa sensação de conforto. 
A criatividade alimenta-se destes pequenos momentos.




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Saturday, January 04, 2025

4/365
January 04, 20250 Comments

 



Veneza em Festa - Exposição no Museu Calouste Gulbenkian


Na pesquisa sobre o conceito de Arte e Estética, e igualmente sobre o Luxo, deparo-me com a imensa dificuldade nas suas definições. Ou pelo menos uma definição que seja mais ampla e que possa abranger as várias descrições que cada um de nós, no nosso plano individual, mas também como elementos coletivos da sociedade moderna, lhes possamos dar. De certa forma, são caracterizações que, ideia geral, terão de conferir um grau emocional, um sentimento - embora sejamos nós, humanos, os sujeitos com capacidade para garantir esse peso a algo material, num mundo físico. 

Contudo, a sua origem, que remonta às primeiras tribos, representam, tendo por recurso pigmentos que nos chegam aos dias de hoje, cenas da natureza, fauna e flora. Evoluindo ao longo de milhares de anos, estas manifestações tornam-se particularizações espirituais ou rituais. A exultação a deuses e criadores, personagens mitológicas ou outras reais. A Arte e a Estética vão avançado lado a lado, nem sempre com o conceito como hoje o conhecemos. E ainda assim, vão dependendo das diferentes regiões e culturas mundiais, sendo que, onde uns consideram, a exemplo, o "vedutismo" um género de arte na pintura, outros exemplificam o chá, a água, um jardim, como elementos que podem e devem ser representados pelo seu simbolismo e importância social. 

Com o surgimento da fotografia, a amplitude aumenta. O desejo de retratar de forma direta, o momento presente, recordação para o amanha, acaba por transformar, uma vez mais, o objetivo da Arte, ou, melhor, acaba por se transformar, em si mesmo, em mais uma forma da mesma. 

Pessoais e objetivos, Arte e Estética, afinal, dependerão de quem os aborda e de quem é seu espectador. Ou da sugestão que lhe é dada, ou até mesmo de um interlocutor (um influenciador). Uma imagem pode ser "bela" aos olhos de um grupo de pessoas, independentemente da forma como lhes é apresentada, seja por escultura, pintura, desenho, fotografia, música, cinema ou de tantas outras maneiras. Uma imagem pode apenas ser significativa, impactante a quem a cria ou a uma única pessoa que a aborda. No fundo, como escreve Martim Sousa Tavares em "Falar Piano e Tocar Francês", "o poder da atribuição de beleza (aloca-se) na pessoa que observa e não no objeto observado, fazendo com que este não tenha determinado valor absoluto e intrínseco". 

Transportando esta teoria para o prisma de luxuosidade, pode-se afirmar que uma obra de arte, mais do que a sua estética, que, por sua vez, é muito mais susceptível à ideia do espectador, terá apenas valor quando se distingue pelo legado e capacidade de adaptação às diferentes gerações? Uma vez mais, qual será o preciso momento no qual um objeto deixa de apenas o ser e transfigura-se em algo admirável, além de belo, transmitindo sensações únicas? 

 

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Wednesday, January 01, 2025

dia 1/365
January 01, 20250 Comments

 



Algo que é criado para ser olhado, apreciado, tido como exclusivo, elevando-se da categoria dos demais objetivos, da restante Arte e até mesmo, Cultura. Algo que cause impacto, seja prazeiroso, podendo ser supérfluo ou não. 

Outra definição que poderia caracterizar o tema "Luxo" e que dá origem aos futuros textos e monólogos durante este novo ano. Algo diferente sim.






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Tuesday, December 31, 2024

a virada do calendário
December 31, 20240 Comments





TIC TAC

TIC TAC

TIC

TAC



Poderia ser mais uma publicação sobre o final do ano. Mas na verdade, queria fazer deste texto uma quase monografia sobre a transição do momento. Ou aquilo que para muitos se inicia por "inverso", ou a subversão da ordem. 

O conhecido intervalo de tempo no qual as pessoas entregam-se às festas e aos prazeres, tenham eles qualquer origem, para, de seguida, iniciarem um período de restrição que, não raramente tem começo na Páscoa e término no Dia da Ascensão. 

Mas falar disso, implica todo um trabalho de pesquisa que ainda não está completo, pelo que apenas posso garantir - aproveitem estes meses próximos. Encham os olhos, encham as mentes, cultivem-se. Visitem exposições, leiam livros, não se iludam por pequenos ditadores, sejam eles de que lado forem da barricada. 

Vivam cada momento, cada dia. Porque se estou, ou quero falar de luxos, de preciosidades, de momentos, de transições, de virada do calendário, apenas uma única coisa é comum a todos: o Tempo. Nada mais. E mesmo assim há que o perca rapidamente, em devaneios, em pouca lucidez, porque é mais fácil atenuar as dores em algo que nos deixe sem conseguir sentir. 

Como disse há dias a uma inspiração minha, podemos parar, e nem perder tempo com essa paragem. 

Dia a dia, de cada vez. 





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Wednesday, December 25, 2024

novamente, natal.
December 25, 20240 Comments



Falar de natal é falar de rituais. Sejam eles de origem cristã, ou, mais adequadamente, de origem pagã. Podemos, se quisermos, dissecar a epoca de festa, apontando para a necessidade básica e, muitas vezes, conturbada de óbvio massacre e obrigação, de juntarmos no mesmo espaço, um grupo de pessoas, muitas vezes associadas por sangue (família biológica), mas das quais só queremos uma coisa ao resto do ano - a distância de segurança, normalizada, de forma a evitar perguntas intrusivas ou discussões sobre os diversos temas da atualidade, que, cada vez mais, mostram uma fratura na sociedade moderna. 

É, claramente, a época que anuncia os excessos de consumo, seja material ou, porque não, alimentar - o início de uma época designada por "inverso" que irei melhor explorada em breve, refletindo sobre a sua origem e sobre a sua associação com o que se entende por "luxo".

Podemos refletir sobre isto, ou podemos mencionar que o natal corresponderá a um recomeço, a uma época de início, apontada dias antes pelo solstício de Inverno (a noite mais longa que dá origem aos dias maiores e mais quentes), o ponto mais afastado do sol em relação à terra. Há quem evoque a tradição da queima do madeiro, que ocorre na noite de 24 de dezembro, na verdade, o fogo que aquece Jesus nascido, e podemos também averiguar a sua origem mais remota, de como se celebrava o fenómemo astronómico, também ele associado a um novo ponto de partida, pelos povos celtas.

Seja como for, é, definitivamente, o momento de transição anual, validando um calendário mais ou menos lunar, que antecede o início de um novo ano, de prosperidade, crescimento, fertilidade, que culminará no estio. 

Não deixa, no entanto, de ser também, uma época de reflexão. Deveria de ser uma época de recolha, de maior solitude. 


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