Diferentes formas de vida - Cláudia Paiva Silva

Thursday, March 26, 2020

Diferentes formas de vida


Talvez seja altura de parar com a poesia.
Depois do choque inicial, da rapidez com que tudo aconteceu, quando começa a haver excesso de informação horário (às vezes minuto a minuto) e para lá do romantismo que podemos ver inicialmente em tudo, desde os sinais do universo, às mais nobres profissões que estão lá fora para que nós fiquemos cá dentro, há que perceber uma única coisa: o tempo pode ter parado sim, mas as nossas vidas nem tanto.
Em poucos dias algumas empresas e muitas pessoas tiveram de se adaptar rapidamente a uma nova realidade e a uma diferente forma de estar e viver:  tele-trabalho, aulas via internet, prestar atenção e ajudar filhos e família quase 24 horas por dia, exercitar os métodos de compras online (perdendo todo o receio que antes havia para o fazer), exercício físico em casa, tudo mudou para grande parte da população. Os conceitos de proximidade física com o outro alteraram-se à mesma velocidade com o que os conceitos de proximidade familiar se estreitam. Nunca em tantas décadas houve tanta gente a viver debaixo do mesmo tecto, tal como nunca em tantos anos pais estiveram tão próximos dos filhos - da mesma forma que nem nunca avós e netos tiveram de estar separados ou pessoas tiveram de ficar totalmente sozinhas e isoladas. A ordem natural das coisas como estávamos habituados mudou e as suas consequências só poderão estar visíveis talvez a médio ou longo prazo.
Posto isto, de que forma o isolamento quase obrigatório, a quarentena (o esperar que possam surgir quaisquer sintomas de doença), o estar e ficar literalmente em casa mudou a nossa real forma de ser e de estar na vida?
Estranhamente ou não, para aqueles que faziam do seu espaço mais íntimo local de trabalho, esta situação parece não ser confortável - a clausura habitual poderia ser pautada com saídas, reuniões pontuais com colegas, jantares com amigos, e sim, um ritmo de trabalho e produtividade dentro dos padrões normais. Agora, a "obrigação" torna-se um peso e a desconcentração parece imperar.
Já para aqueles, como eu, habituados à rotina diária de trabalhar num escritório (ou outro espaço fora de casa), a questão coloca-se de outra maneira. Poderá haver maior tentação para a distracção, mas acho que é exactamente isso que nos leva a trabalhar por vezes muito mais - um esforço extra que, se antes era não era visível pelo número de idas às copas ao longo do dia, agora nem sequer nos passa pela cabeça. No meu exemplo, estar na minha zona de conforto, com toda a "minha tralha" em redor faz-me pensar que quanto mais cedo me despachar (mesmo que acabe por ganhar mais vontade para trabalhar e ver mais calmamente coisas que se calhar estando no escritório não veria) mais depressa vou ler aquele livro adiado, ou fazer aquela pintura que tanto ando a imaginar. Não acredito que haja menos responsabilidade tal como não acredito que os trabalhadores não respondam às solicitações que lhes possam ser feitas estando em casa - sinto-o até como uma forma de auto-defesa - há que mostrar aos nossos colegas e chefias que lá por estarmos em casa não implica que estejamos sentados no sofá a ver filmes ou séries. Aliás, parece que na verdade é algo que temos de provar não só a quem de direito mas também a toda uma sociedade que de repente surge de peito cheio garantido que somos uns preguiçosos, medricas e que por nossa causa a economia nacional parou - a esses apenas lhes digo que já todos percebemos quais as vossas prioridades. Principalmente quando são vocês que estão sentados nas vossas cadeiras de couro bafiento, enfiados em escritórios que se devem localizar certamente numa sala de uma casa onde também habitam. 
Mas sim, é exactamente por isto que devemos parar com a poesia por uns tempos - porque a realidade é esta e terá de ser instalada no nosso sistema até se tornar numa normalidade anormal. 

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