July 29, 2019
BY Cláudia Paiva Silva 0
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"Devolvi o hábito de me esconder debaixo da cama, deitada no chão, os joelhos abraçados pelas mãos, o pescoço colado ao peito. Era a posição de morte do avozinho. Talvez passase por diversas gerações, através do sangue contaminado com mágoa.
Entrava numa sonolência que misturava realidade e fantasia, ao ponto de não saber em que preciso momento começava uma e acabava a outra. Quem ali estava era eu. O meu corpo, os meus joelhos abraçados pelas mãos, o meu pescoço colado ao peito. Ao mesmo tempo, passeava pelo claustro, mordia o manjar dentro da boca de João, brincava com o meu filho, ria e chorava, gritava e arremessava objetos ao rei, forma de demonstrar a minha ira.
Forma de demonstrar o meu interesse.
- Gosto de ti quando te zangas, Paula - dizia-me el-rei.
Considerava-se essencial, não eram suficientes o brasão e a dinastia e a tradição secular que o perseguiam enquanto sombras ou fantasmas. Como se não fosse suficiente ser rei de Portugal e Além-Mares.
- Não te posso fazer rainha, Paula.
A voz soava ao longe, não sabia ao que pertencia, real ou imaginária.
- Passeávamos pela savana, aquele calor, pó, os cavalos e os elefantes cansados, tudo pardo, amor, as searas pardas, o chão pardo, só o céu azul destoava, eu afrouxava, África é dura, os negros são desconfiados, os animais, agressivos, em nada há beleza humana, gentileza, veludos. Tudo parecia cru como carne antes do fogo. As cores, os cheiros, o suor do meu corpo. Mandei parar a comitiva, era preciso parar, os escravos não, ms nós sim, há um limite de diferença que o corpo aguenta. Paisagens, temperaturas, comidas, cores e cheios são o que nos distinguem, sabias? E depois vi-a. Uma fêmea de elefante aproximava-se da carcaça de um macho morto... Deavagar, sem pressa. Ele devia estar ali há dias, os olhos encharcados em moscas, a carcaça enegrecida e podre. Sobrava a presa dele, em marfim, dente branco que destoava do negro, e foi aí que ela enrolou a trombra. Vi abutres, vi hienas, nenhum se atreveu a aproximar-se para comer o corpo morto, como fazê-lo, a fêmea não saída, parecia que o velava. Ficou horas no mesmo lugar. Um dos indígenas explicou que os elefantes, quando sabem que vão morrer, afastam-se da manada. Morrem sozinhos, Paula. Mas aquela fêmea não deixou que ele ficasse sozinho. Passou horas ali, com a tromba enrolada nele, como se fosse um braço e entregar a última carícia.
Vi os elefantes e imaginei a savana. O cheio de João ficou preso no meu nariz. Acordei encharcada. Não sabia se era suor ou lágrimas.
Não te escondas debaixo da cama...
A carta tinha apenas uma linha: "Não te escondas debaixo da cama". Chegou dois dias depois do meu sonho e percebi que não tinha sido apenas um sonho, tinha sido um sonho e uma realidade. Ele tinha vindo a mim, de noite como um ladrão, para me contar uma história de amor ao ouvido e depois sair, como um ladrão e levar o resultado do furto: a minha emoção. Não era cruel, porque a crueldade pertence ao reino dos que riem sem alegeria, era leviano, o que é o mesmo que rir sem alegeria e sem propósito, duas vezes cruel.
Eu não perdoava ladrões"
Madre Paula de Patrícia Muller