2024 - Cláudia Paiva Silva

Sunday, November 17, 2024

os dias banais
November 17, 20240 Comments

 




Ao ler Beatriz Serrano (Madrid, 1989) e o seu "O Desencanto", pauto por momentos de riso audível, ao mesmo tempo que vou sublinhando (algo quase raro em mim, mas que tem vindo a ganhar espaço) alguns parágrafos que batem em cheio com a realidade que atravesso.

A começar, "O Desencanto" é um livro contemporâneo, localizando a ação em Madrid, mas que poderia passar-se em Lisboa, Porto, Londres - qualquer uma dessas metrópoles europeias, desde que a personagem principal (nós mesmos) nos sentíssemos em uníssono: num enorme buraco negro na vida laboral, no qual os "highlights" passam pelo tempo entre a nossa casa e o escritório. Momentos durante os quais podemos alienar-nos, lendo, ouvindo música, fazendo algo que realmente nos agrade e quiçá, preencha mais, no que respeito diz a fazer-nos sentir úteis ou, simplesmente, felizes. 

Outros momentos que aligeiram o tormento: exposições, podendo trocar o Prado da história (não tão) ficcionada, por uma Gulbenkian ou Arte Antiga, palestras literárias, ver vitrines e montras. Como escreve a autora, não inteiramente por estas palavras, "coisas que não são feitas para o tamanho da nossa parca conta bancária, mas que nos preenchem a alma.

Seja como for, desde quando cheguei a este ponto? Qual terá sido o momento preciso em que me tornei igual, exatamente igual, a todo um grupo de pessoas, trabalhadoras, sim, mas com quem nunca me tinha (nem queria) identificar?

Podemos falar do cansaço de ter de lutar para pagar contas, as quais nem dois trabalhos (precários) conseguem colmatar, as constantes preocupações com saúde de familiares, verificar o estado lastimável para onde o mundo se vira - e saber que muitos rejubilam de felicidade em ver que estamos recuar décadas (talvez séculos) de evolução social. 

Mas a verdade é que sim, a vontade de atirar a toalha ao chão é brutal, num mundo onde parar não é opção, mas continuar a remar contra a maré, também não parece ser inteligente. 

De acordo com "O Desencanto" a personagem principal, publicitária por trabalho - não por profissão -, ensina-nos (a todos, independentemente do que façamos), como "sobreviver" a cada dia de labuta. Como consegue fazer de conta que faz muita coisa e apresentar trabalho, quando na verdade, apenas faz o que todos os outros fazem, copy-paste de ideias, apresentadas com outra roupagem, com outras palavras e voilá, feito. Isto, temos de admitir, SEM RECORRER a essa máquina maravilhosa que é o chatGTP - coisa medonha, mas que dá imenso jeito quando a inspiração parece não querer colaborar. Conto pelos dedos de 1 mão apenas as vezes que recorri à IA para me lançar umas duas frases que me dessem alento. Ainda assim, é uma ferramenta útil, caso a saibamos usar (bem!) em nosso proveito.

Ainda assim, garantidamente, algo diferente se apoderou da minha pessoa. Sinto que me aproximo mais (e não apenas por empatia) das pessoas que comigo andam nos transportes públicos, a tal classe social que é identificada como pobre (e, graças a uma comunicação social elitista, como perigosa ou criminosa), das mulheres que terão, certamente, nas suas cabeças muitíssimo mais do que afazeres profissionais, mas sim domésticos e familiares. 

E apesar da minha cabeça borbulhar de ideias, a minha capacidade de enquadramento e organização de pensamentos, acaba por estar anos-luz de distância de qualquer funcionalidade. 

Ou é por cansaço, ou porque a procrastinação não ajuda. 

A exemplo, demorei 4 dias a partilhar este texto, estando o primeiro parágrafo redigido num caderno. E entretanto, quantos temas terei debatido com conhecidos ou amigos, coisas sem qualquer suposta relevância ou, pelo contrário, com toda a importância que, para mim, apresentam? 


Os dias banais sucedem-se, pois é, em dias de, agora outono, que não se prolongam, bem pelo contrário, nem tão pouco repetem. A cadência, ou decadência, temporal é real, embora possam ajudar as temperaturas acima do normal, que neste fim de semana se fazem sentir. Mas a noite avança rapidamente, pedindo para recolhimento, e algum silêncio. Mesmo mental. 

Há quem possa também falar em depressão, melancolia, saudade, ou simplesmente, solidão. Mas sabem que agradeço o estar sozinha num mundo em ruído permanente, onde notícias são partilhadas e estilhaçadas no mesmo momento, dessecadas à verdade e à mentira perante as crenças de cada um de nós. 

Na verdade, e citando o livro que agora me passa pelas mãos e olhos, "A verdade é que não sei fazer nada em particular e não sei como é que cheguei até aqui. Desconfio que fui aperfeiçoando a brincadeira dos escritórios até que os outros começaram a acreditar que sou uma grande profissional". 

Errata - EU SEI QUE SOU uma grande profissional, mas sei que estou subaproveitada e a perder qualidades, se não me auto alimentar intelectual e cientificamente. 




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Saturday, November 02, 2024

As sopeiras do Marco Paulo
November 02, 20240 Comments

Marco Paulo morreu, VIVA Marco Paulo.

Goste-se ou não do estilo musical, das canções românticas, muito datadas de anos 80, com um quase nada, quase tudo de sotaque português a partir de uma versão brasileira, ou de arranjos a partir de originais espanhóis ou italianos, Marco Paulo foi um dos maiores ícones da música nacional.

Será impossível não se conhecer pelo menos um refrão do extenso repertório. Pelo que, a agora tendência de se interrogar "Quem?" sempre que algum artista (non-grato) desaparece deste plano, é, no caso, completamente abjeta.

Posto isto, os comentários após o seu falecimento, demonstram um profundo desconhecimento social, diria até musical, desconsiderando a enorme voz do artista. Contudo, o que mais choca foram as retóricas estabelecidas com base no típico preconceito, diria mesmo, machista. Sei que ninguém o é em Portugal (por quem sois), claro, mas quando se limita Marco Paulo a uma faixa social apenas feminina, e não raramente, pobre e iletrada, as "sopeiras" como Luís Osório tão bem recordou no seu elogio ao cantor, as "donas de casa", existe, sem dúvida uma agravante desnecessária. 

Tal como nas últimas semanas, muitos elementos da nossa elite, promoveram os suburbanos a gente pobre, sem acesso à educação, e, também, potencialmente perigosa, assim que Marco Paulo morreu, o espetro aumentou ainda mais. Afinal eu estava certa - somos mesmo quase analfabetos(as), que sonhavam alto enquanto cantarolavam as cantigas de amor, enquanto lavavam as roupas dos outros, as próprias, passavam a ferro, ou faziam as limpezas nas casas dos "senhores".

No livro "Na terra dos outros" de Manuel Abrantes, faz-se um retrato e relato, bem verdadeiro, sobre essas raparigas, que bem jovens, vieram na província, ao longo de décadas, para trabalhar nas casas das cidades maiores, muitas delas tornando-se alvos fáceis dos desejos dos patrões, dos "senhores", ou, talvez melhor infelicidade, das iras das patroas, as "senhoras", bem explanado pelos tabefes e outras agressões físicas. Por outro lado, basta relembrar também as principais vítimas das cheias de 1967, muitos e muitas, também eles, procurando uma vida melhor, longe da maior pobreza de onde tinham saído. 

Menosprezar estas gentes, que são hoje avós e pais, da geração "mais bem preparada de sempre" que Portugal tem, através do escárnio, e a partir de um cantor de música ligeira portuguesa, é menosprezar quem vota. Esses mesmos que, sendo iletrados, são os que conferem Poder a todos aqueles que os olham de alto, protegidos pelo seu privilégio, conferindo-lhes a adjetivação que bem conhecemos. 

Marco Paulo, por sua vez, apenas queria cantar para um publico que, realmente, lhe conferiu um epíteto de ídolo. Fossem mais mulheres e menos homens, aquele que nasceu no Alentejo, que tinha Amália como devoção, que adorava a mãe mais que tudo, que não recebeu, talvez, o carinho e apoio de um pai que o via "diferente". Marco Paulo, ou João Simão da Silva, de quem a vida privada pouco se conheceu, e a que se sabia, ainda alimentou algumas histórias e polémicas, como acontece com todos aqueles que chegam à primeira linha de fama real. Marco Paulo, aquele que, amado por milhares, detestado por alguns poucos, com feitio irascível que o "stardom" lhe conferia, e que ainda terá servido de inspiração a um Tony Silva de Herman José.

Aquele Marco Paulo, das sopeiras e donas de casa, de todos os jovens nascidos entre 70 e 80, e também inícios de 90, que o cantavam em karaokes e festas de aniversário nas garagens, a par de Prince, ou mais tarde Nirvana. O Marco Paulo do "sempre que brilha o sol", "eu tenho dois amores", "uma lady na mesa, uma louca na cama", aquele que será recordado por muitos mais anos do que qualquer um dos novos "grandes" nomes da música nacional. 

Aquele que representa, senão uma geração, toda uma classe social, de acordo com os entendidos da cultura portuguesa. Aquela gente que, na verdade, não sabe nada, de nada. 


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Thursday, October 24, 2024

Ninguém perguntou nada, mas a periferia não é um grande bairro social
October 24, 20240 Comments

Eu sei que ninguém me perguntou nada. E que a minha opinião valerá zero, embora habitante de uma antiga vila-tornada cidade dos arredores de Lisboa, desde há 40 anos. Ou seja, desde que nasci. 

Mas a verdade é que a periferia da capital não é um grande bairro social, tal como o Porto, caracterizado pelos seus bairros tão pitorescos e típicos, não pode ser identificado como uma cidade perigosa - pese os locais, até há uns tempos, completamente impossíveis de penetrar. A exemplo, o "Morro da Pena Ventosa" (o bairro da Sé), tão bem descrito por Rui Couceiro, no livro com o mesmo título.

Ainda assim, é com profundo espanto (e revolta!) que desde a pandemia, vejo, sempre que há "problemas", apelidarem-se as cidades dos arredores de Lisboa, que perfazem a grande área metropolitana da cidade, bairros sociais. Deixa de haver Benfica, Carnaxide, Alfragide, Queluz, Massamá, Cacém, até ao limite que a Serra de Sintra com os seus belos palacetes, impõe. 



Nos últimos dias, a Cova da Moura, bairro social problemático (sim!), torna-se a Amadora por inteiro. O Bairro do Zambujal (paredes meias com a Buraca e de onde tantos marchantes saem ultimamente para desfilar no 13 de junho na Avenida da Liberdade, na avenida das "lojas PARA ricos", -  também ele problemático, mas onde se localizam várias instituições estatais, como o Laboratório Nacional de Energia e Geologia, a Agência Portuguesa do Ambiente e quase quase, o Estado Maior das Força Aérea), torna-se apenas Alfragide. 

Já passado o estigma de "cidades dormitório", muitas delas que se desenvolveram com educação, cultura, comércio (não apenas o de vão de escada), veem-se, ou, "sentem-se", novamente, no olho do furacão. Quando se colocam todos os bairros, todas as pessoas no mesmo saco - porque para a maior parte dos comentadores políticos e não só somos apenas trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, do comércio a retalho, de cafés, e não licenciados, pós-graduados, doutorados, cujos preços das habitações atiram ou mantêm-nos nas mesmas localidades que nos viram crescer -, não há forma de voltar atrás. 

Quando, após 1974, as políticas de receber os imigrantes vindos das ex-colónias (falamos de negros e não de "retornados") falham a toda a ordem, esperamos o quê? Quando não existe integração, quando existe ostracismo, quando existe desconfiança, pobreza, construção de bairros ilegais, esperamos o quê? Quando as escolas não fazem o seu papel vigilante às crianças que sabem estar em "risco", quando não há - porque não se quer - empenho, quando os pais dos outros alunos os proíbem de brincar, de conviver com os colegas "pretos", estamos à espera do quê? Quando temos polícias cada vez mais jovens, muitos deles vindos também de bairros sociais, de famílias destruturadas e muitos vítimas de igual violência, com acesso a armas de fogo e com sangue quente na guelra, sendo colocados, exatamente, nas esquadras destes mesmos bairros, estamos à espera do quê? 

Mas o essencial seria começar a perceber, de forma mais definitiva, e sabendo que a comunicação social apresenta muita culpa nesta questão, não, os arredores não são um bairro social gigante, no qual, a partir de agora (e como vi ainda hoje na Rua Elias Garcia em Queluz), a polícia tem todo o "pequeno poder" de fazer o que quer, nomeadamente, a quem não paute pelo privilégio da cor branca da pele. 

Porque além de um problema social, enraizado ao final de 50 anos, temos um problema racial, que nunca foi apagado. Tal como há 600 anos atrás se achava que éramos donos de parte do mundo e das pessoas que nele habitavam, o mesmo aconteceu há 50 anos, quando tantos ainda achavam que os negros e negras eram propriedade, eram escravos, pese a abolição em Portugal (tardia) em 1869 "em espaço controlado pelo Império Português", tal como hoje, há quem jure a pés juntos que são todos para voltar à terra deles - exato. Porque temos muitas pessoas, brancas, que estejam com vontade de acartar sacos de cimento, vigas de betão, trabalhar nas limpezas, nas estufas, e a ganhar menos que o salário mínimo. Esperem. Sim, há quem ache que os portugueses de "bem", brancos, repito!, que vivem no tal bairro social gigante, dormitório, são todos pobrezinhos, sem habilitações literárias, e que podem fazer esses serviços. Podemos. Não me cairiam os parentes na lama. Mas não foi para isso que haja quem tenha feito sacrifícios para que eu estudasse, para que outras pessoas da minha geração estudassem. 

Não há porque generalizar, mas generaliza-se. E sim, tem de haver justiça, porque a descriminação existe também, demasiada até. E sim, a revolta vai num crescendo, e começa a ultrapassar as fronteiras e fossos dentro dos bairros sociais, passando para as cidades que os acolhem, entrando pelas casas de todos os quantos habitam nas cidades dormitório. 

E sim, é preciso cuidado, porque a paciência de uns não é a paciência de outros, porque a escala social vai-se desgastando e perdendo, porque nem todos podemos morar, como tanto tenho ouvido, em Campo de Ourique, ou no Parque das Nações, ou em condomínios fechados. Todos somos pessoas reais, todos pagamos impostos, podendo ser utilizadores de transportes públicos, cada vez mais insustentáveis e com uma péssima gestão, ou de veículos automóvel privados e individuais. Por isso não, não pensem que tudo é bairro social, porque o próprio conceito, se estivéssemos num mundo ideal, correto, justo, nem deveria existir, 

Pobres daqueles que vivem em unicórnios dourados e que não sabem NADA da vida além das suas bolhas de proteção. 


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Tuesday, October 08, 2024

Histórias, livros, distopias e outras realidades absurdas
October 08, 20240 Comments

Tenho este título guardado em formato rascunho desde julho. Na realidade nem me consigo lembrar da razão para tal nome, mas presumo que esteja relacionado com a quantidade de informação visual que me teria passado pelos olhos até então. De notícias de guerra, cenários de horror que, inicialmente justificáveis, ao final de 1 ano, de anos, não se podem já assim considerar. De livros, alguns que se revelam tão distópicos, mas que de tanta realidade são feitos. Designados de forma abjeta por romances, mas com aquela realidade poética, das que nos entram pela casa dentro, pela vivência dos dias. Gosto do realismo da vida - e mesmo que seja em forma de livro.

Ah, mas assim tu não vives! - Quem disse?

Contudo, é sério quererem mesmo que se viva este mundo em convulsão constante, qual vulcão sempre prestes a explodir em escoadas que não serão básicas, mas sim ácidas, com nuvens piroclásticas que nos deixarão, a todos, com os corpos fossilizados de Pompeia? 

Talvez a descrição seja exagerada - mas quando hoje, uma vez mais, se constata que o futuro da liberdade de expressão na comunicação social (e não apenas), poderá estar ameaçado, ou quando a escalada de notícias falsas começa a ser um ataque direto ao conhecimento científico, a sensação que tenho é de uma profunda regressão, um retrocesso à idade média. Só nos falta deixar de tomar banho para que seja praticamente idêntico.

Claro que muitos irão ler isto, alguns, já me o disseram, chamar-me-ão de preconceituosa ao ter uma ideia preconcebida dos preconceitos dos outros (lá está, a minha experiência é o que é, e como tal, é naquilo que valido a minha opinião e consideração dos demais), outros de "privilegiada branca, da esquerdalha radical". Confesso que esta expressão/adjetivo é algo que me deixa .... é isso, que me deixa. Porque embora, claramente, me aproxime de uma ideologia de liberdade, de manifestação de opinião, de inclusão social, radical não sou certamente - até porque radicalismos, expliquei em tempos num vídeo, tanto servem interesses de esquerda como direita. Não há diferença alguma entre a Venezuela e a China, ou a Rússia, ou a Argentina, ou o que virá a acontecer a vários países dentro da região europeia. 

Assim sendo, pergunto, continua a ser verdade que eu não viva? Não, esperem, eu não vivo é conforme o que os outros gostariam que eu vivesse - que fosse mais obediente, mais calada (ou menos histérica), que fosse mais caseira (e, preferencialmente com a vida "organizada" aka, casada e com filhos, porque aos 40 anos, já vou para um útero seco e encarquilhado). Mas infelizmente, para esses e essas, o corpo é meu, as escolhas, várias, são minhas também.

E por falar em escolhas, falemos em "tempos". Timings. Aqueles momentos em que poderíamos ou podemos, aproveitar, para fazer, para atuar, para falar, para estarmos calados. Aquele preciso segundo ou minuto, que podemos mudar (quase) tudo. Como no anúncio. Primeiro, saberemos identificá-los? Eu confesso que para coisas "banais" não me custa reconhecer, já para aquelas situações laborais, do "espera antes de falar, pensa antes de responder", definitivamente não. Ou melhor, finjo não saber. 

É tão desafiante como ser-se primeiro-ministro nos dias que correm. Ou tentar entender o que determinados partidos pretendem. Ou estar à espera de ficar desempregada porque existirão fusões e outras conjugações (reformulações, acabo de ver/escutar) numa área que ninguém compreende para que serve, ou gosta - energia e recursos geológicos, e como tal, vamos lá reduzir estas despesas extra, começando pelos recibos verdes, verdadeiros ou falsos, oops, estou a lamentar-me e não deveria. 

Uma mulher não chora, nem tem dor no parto, quanto mais queixar-se do mundo laboral. Errata: um jovem, um homem, uma mulher, uma jovem, não podem fazê-lo. Numa época em que a saúde mental é tão importante, pede-se cada vez mais, profissionais que, na verdade, tenham mais do que uma licenciatura, mestrado e doutoramento, que seja multifacetado. Sejam então aptos e tenham a possibilidade de trabalhar por 3, ganhando menos do que 1 ganharia. E estejam sempre disponíveis. S E M P R E! Mas uma mulher, não. Não somos tão feministas? Não temos então a força necessária para a resiliência e a capacidade de tratar de vários temas ao mesmo tempo? Sermos mães dos filhos das nossas sogras e mães dos filhos dos filhos das nossas sogras? Capacidade de trabalhar e sermos CEO's, ao mesmo tempo que fazemos as listas de supermercado e pensamos no jantar da noite e almoço para o dia seguinte? Capacidade de estarmos em reuniões, e receber mensagens a explicar como estão os nossos pais, que nos pedem igual atenção? E ainda nos queixamos? Não pode. E se fores a um médico? Uma ajuda psicológica? A sério que ainda tens tempo para ir falar ao divã? Sejas rapaz ou rapariga, com o peso óbvio que cada género atualmente acarreta - menino com o peso do macho alfa, o rapaz da família, aquele que dará continuação à espécie e ao apelido paterno, patriarcado enraizado e masculinidade tóxica, menina com o peso da fêmea frágil, a continuidade da espécie HUMANA (não tanto familiar), a que será mulher e mulher de alguém, antes que se corrija para o "esposa", a dona de casa, a MÃE. Os valores tradicionais rotulados num azul e num cor de rosa, que sim, continuam a ser usados. 

E lá vem a ladainha "woke". A da radical de esquerda, certamente amantizada com algum bloquista (ou alguma), aquela que merecia ser violada por um estrangeiro qualquer (isto ameaçado por portugueses brancos, adoradores do tempo em que as mulheres eram rainhas da cozinha, via rede social).

E sim, estamos, com isto, em realidades absurdas, onde as cidades vão perdendo os seus habitantes, sendo substituídos por turistas e nómadas digitais, onde o ódio que se vive atrás de écrans, mas também no dia a dia, a falta de paciência absoluta, de empatia, de respeito, de educação, de entendimento que à escala geopolítica algumas coisas não podem ser tidas como branco ou preto, muito menos quando (não se quer) conhecer a História. Realidade absurdas que poderiam parecer em tempos idos distopias, onde máquinas já fazem o trabalho de pensar pelos humanos, que não querem pegar em enciclopédias, em aprender, em acreditar no que já se esqueceram ter aprendido na escola, preferindo acreditar em meia dúzia de criaturas que acham saber mais do que os outros, quando nunca estudaram nada sobre os assuntos. Contra vacinas, contra tremores de terra, contra ciclones, contra escassez de água, contra incêndios, contra alterações climáticas .... contra a Natureza que um dia faz de conta que está contra a Humanidade. 








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Saturday, March 23, 2024

Dor, fé e devoção, para as massas
March 23, 20240 Comments

 


Arrancado aos pedaços, com boas doses de música ambiente dançante, numa discoteca privada apenas aos presentes. Precedido com uma introdução da australiana-fixada em Brighton, no sul de Inglaterra, Suzie Stapleton, mostrando, uma vez mais, o poder da guitarra no feminino. Cortinas para baixo, em escassos minutos de atraso. 

Para quem sempre se acostumou a estar sentada, confortavelmente, nos balcões laterais, vendo tudo por um canudo, ou tendo de ampliar ecrãs de telemóvel, aquelas 3 horas e meia em pé, bem mais perto do palco do que inicialmente tinha consciência, foram surpreendentes - e esta palavra não serve, nem justifica o sentimento. Desde o momento em que chego à fila, já de si longa para um "Golden Circle" que, afinal, era tudo menos isso, até que arredei pé do local onde me fixei, tudo me parece, ainda, ao dia de hoje, simplesmente, surreal. 

O M de Memento Mori, ou do que quisermos inventar nas nossas teorias da conspiração perversas, enche o palco, relativamente mais pequeno ao que certamente, costuma passar por outras cidades. Mais baixo, de acordo com a plateia multinacional, o que rareia a vista, nomeadamente quando os braços se elevam para gravar tudo o que acontece. 
Primeiros acordes, numa banda que, passados tantos anos, após um ALIVE que não era para ela, retorna a Portugal. E se me é permitido, que estava, honestamente, "receosa" do que poderia de nós receber.





Sendo que o jornalismo se quer isento, aviso que este texto, é um artigo de opinião. De isenção pouco terá. Sim, poderá ser um texto enviesado para muitos, mas quem esteve onde eu estive desta vez, e não nos tais balcões, onde, há quem diga, pouca emoção se fez sentir, entenderá que, apesar do cansaço físico, óbvio e visível, as vozes estiveram impecáveis, a força e energia de entrega também, pese os já tradicionais problemas de som de um "pavilhão atlântico" que nunca os conseguiu superar. Nem, alguma vez, irá.

O M estava com caveiras, vermelho. Óbvios registos do tema que deu início à noite incrível que Depeche Mode trouxe a Lisboa. E não, não revisito a lista de canções tocadas, simplesmente porque pouco me importou. Estava a vê-los e a "tê-los" a escassos metros. Tudo o resto deixa de ter importância, ou fazer grande sentido.

Pelo fim. Diz, quem foi, diz quem foi a todos os concertos da banda em Portugal (e uns tantos lá fora), que, a noite de 19 de março, só foi comparável com a Devotional Tour, quando a banda inglesa passou por Alvalade a 11 de julho de 1993. Não sei, mas tenho de acreditar. Só comecei a seguir o percurso, na altura, atribulado, a partir de 1997.

Mas "há dias", tudo estava perfeito. Tudo foi perfeito. Nomeadamente a energia do público. E como energia gera mais energia, o que se dá, recebe-se em troca a triplicar. E esse, foi o quebra gelo para uns senhores, que no auge da sua idade, experiência e respeito que lhes é devido, conseguem transformar a dor, em fé e devoção para uma massa humana, que encheu até ao máximo o espaço escolhido. Foi esse o momento em que o receio de entrar em diálogo, ainda que escasso, com a plateia, se dissipasse. A partir dessa altura, dar e receber, de lado a lado, foram totais.

Não posso refletir no que lhes passaria pela cabeça. Poderia entender que o físico, de todos os que lá estavam, já pesa (sim, nos meus 40 anos, não posso esperar sentir o corpinho como quando tinha os meus 23 anos). Mas posso garantir que a experiência foi orgásmica. Passo a explicar: aquele instante em que se atinge o êxtase, em que se chora, em que não sabemos em que terra estamos. Para mim foi assim, mas compreendi que para tantos outros, foi similar. 
Uma vez mais, é uma opinião pessoal. Não é coletiva. 

Desde a tímida homenagem a Fletcher, aquela criatura tão querida por todos, mas cujo desaparecimento fez crescer uma proximidade entre Martin e David, como há muito não se conhecia, nem via. Estaria ele presente? Certamente que sim. Fiquei no lado onde o "clapping hand man" costumava estar. Quem dera que ele lá continuasse, para dizer adeus a todos, volta e meia, e tocar num tecla apenas, outra meia volta depois. Mas a sua falta, acaba por ser uma resposta ao deus no qual Martin tanto acredita. Tornou os amigos coesos. As famílias mais próximas. Momento Mori - lembra-te que vais morrer. E daqui, não levas nada a não ser estes instantes. 

A emoção pode ter sido resultante, também, aos temas que mais me tocam, aqueles que mexem claramente com a minha psique, que me fizeram a mulher em que hoje me tornei, e que me garantem a sanidade em vários momentos. E, claro, a um trabalho de braços incrível e essencial para quem lá vai, e sabe AO QUE vai, e fica para os encores. Não há forma de explicar a sensação. Enquanto vejo Dave a obrigar-nos a um exercício físico que sabemos bem que temos de fazer, e me vejo, aliás, NOS vejo, a todos, à arena em uníssono de coros e braços levantados, não há hipótese. É um momento de sacramento, em perfeita sincronia, como quem vai à missa a comer o corpo de Cristo. É um momento de dor, é um momento de devoção. Pura precisão. 

Foram duas horas e 15 minutos em palco, mais tempo do que nos últimos concertos. Foram mais de 100 espetáculos até agora concretizados, desde o início da digressão. E acho que, qualquer um de nós, mesmo "mortos", ainda assim, bem vivos, de dores e cansaço, ficaríamos, à vontade para mais duas horas. Para mais uma vida inteira ao serviço dos mestres, tímidos nas conversas, proprietários na música.

A cara de David, bem no final do espetáculo disse tudo, segundos antes de sair, definitivamente, do palco. Quem esteve sabe também. E era pura alegria. Não há outra palavra que sirva. Até mesmo, digo, seria desnecessária. 

Agora? É apreciar o silêncio, com a alma cheia. 




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Sunday, March 17, 2024

As Mulheres de Maria Lamas, as mulheres de Portugal
March 17, 20240 Comments

Fizesse chuva ou sol, numa época em que as mulheres eram tidas como boas donas de casa, senhoras de família, boas esposas e mães, recatadas, com profissões, se as tivessem, femininas: enfermeiras, professoras, havia um Portugal inteiro onde a pobreza, obrigava, tantas outras, a trabalharem como os (seus) homens. Carregando fardos de palha, trabalhando nas minas, colhendo o trabalho dos campos, nas lavouras, mais além do parco trabalho em casas de pedra, onde os colchões de palha substituíam os lençóis, as camas em madeira de carvalho, mas que estavam sempre, imaculadamente limpas, apesar da escassez gritante de ordenados que permitissem uma mesa com mais pão, mais carne, alimentando as, não raras vezes, numerosas famílias. 

Maria Lamas (1893-1983) fotografou tudo isso e relatou-o também, na obra Mulheres do meu País (trabalho concretizado entre 1947 e 1950), cuja publicação só foi permitia em capítulos individuais. Embora à época muitas outras mulheres-senhoras, ironicamente as mais privilegiadas, não se identificassem o que estava redigido, não houve impedimento para que Maria Lamas, escritora, professora, investigadora, jornalista, não passasse da revista Modas & Bordados, anos antes, para o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, de quem se tornou presidente da Direção, em 1945. 


Busto de Maria Lamas.
 Gesso esculpido, em 1929, por Júlio de Sousa.

Poderíamos escrever toda uma tese da mulher feminista que Maria Lamas era e do que representou para os direitos entre mulheres e homens durante o Estado Novo, mas a verdade é que, os seus livros há muito que estão "esgotados", as suas exposições fotográficas são "inexistentes", e a sua obra, permanece uma incógnita para quase todo um país, Portugal, bem certo. 





A par com Artur Pastor, entre tantos outros, Maria Lamas, conseguiu, contudo, nas imagens agora expostas na Fundação Calouste Gulbenkian, até 28 de maio, em Lisboa, captar o olhar da mulher portuguesa, a tal que não baixava os braços e não se limitava aos bordados e missas. Esta exposição, um pequeno exemplo do seu trabalho, tem a curadoria de Jorge Calado, que, aos longo de anos, se tornou especialista na escolha das suas fiéis imagens. Ao todo, foram selecionadas 67 fotografias, de pequena dimensão, e raras ampliações. Mas a exposição também conta com pedaços de vida da autora, através de cadernos, anotações, livros. 

Aquela Maria Lamas, que foi presa pela PIDE em 1949, 1951 e 1953, exilada em Paris entre 1962 e 1969, principalmente por um contínuo e manifesto discurso anti-regime, resultando numa contínua e manifesta perseguição pela polícia política, tem agora, aqui, hoje, a oportunidade de se reapresentar aos portugueses, e de mostrar o papel que todas e todos temos, quando lutamos pelo bem comum.



EXPOSIÇÃO AS MULHERES DE MARIA LAMAS 

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN COM ENTRADA LIVRE

ATÉ 28 MAIO 2024

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Era uma vez, a Mulher e o seu núcleo de prazer
March 17, 20240 Comments

 O texto que se segue foi primeiramente publicado na REVISTA RUA a 4 de março de 2024.


Tema fraturante, mas cada vez mais necessário num mundo politicamente correto e, simultaneamente, tão sem amarras, “O Sexo das Mulheres” pode ser entendido como um manifesto, ou, livro de crónicas. 

Contudo, na realidade, o livro da autora Anne Akrich, é um murro na mesa, na evolução do feminismo.





Anne Akrich, francesa, mas criada no Taiti, sabe falar de sexo. E sabe falar de sexo, sem culpas, no feminino. Ou então, sabe falar da culpa que as mulheres sentem quando nele falam, pensam, ou, o fazem.

Porque o livro “O Sexo das Mulheres” (edição Quetzal) não é um livro de educação sexual. Ou melhor, também o pode ser. E porque nos aproximamos rapidamente de dia 8 de março, consagrado e exclusivo para as Mulheres, porque não colocar o dedo na ferida? Mais ainda quando as eleições nacionais irão, certamente, eclipsar mais uma data anual, igual a tantas outras, mas cuja importância não passa de distribuição de flores e pouco mais.

Os números não enganam, e continua a haver uma predominância de casos de violência contra as mulheres, em todo o mundo. Incluindo a violência sexual que já não passa apenas pela violação, ou pela violência de atos sexuais não consentidos.




No livro, contudo, Anne aborda outros temas que tocam profundamente a imensidão da psique feminina. Nomeadamente a culpa que muitas mulheres ainda sentem – sim, em países desenvolvidos, modernos, “open-minded” e onde o “me too” carrega todo um peso. A culpa, maioritariamente derivada de um sistema patriarcal, bem enraizado em países como Portugal, por exemplo, onde até há poucas décadas, a mulher se queria “domesticável” e, “disponível” para as vontades masculinas apenas.

Mas e quando é a vez delas? Num sistema social bem definido, onde o feminismo tem lugar, não haveria espaço sequer para qualquer dúvida. Homens e Mulheres têm o mesmo direito ao prazer, a procurar formas de terem prazer. Mas, sabemos que não é tanto assim, embora, as novas gerações insistam em importar conceitos internacionais que desmistifiquem as ocorrências. Mas será que podemos tratar o sexo da mesma forma em Portugal, como na França, como um país nórdico, africano ou asiático? Talvez não.

O prazer no masculino resume-se rapidamente a uma “ação” para o exterior. Já no que toca ao prazer feminino, há que estimular cerca de 10 mil terminações nervosas. Não pode ser uma coisa rápida e “(in)dolor”.

Ainda assim, palavras como empoderamento feminino, sororidade, ou as mais recentes “estou a criar um/a feminista”, não mais servem do que achas para uma fogueira a céu aberto, com emissões de CO2 por todo o lado. Numa época na qual as políticas parecem convergir para uma “direita” fatual e eficiente, as reivindicações, as questões, as culpas femininas, provocam o caos e o medo no masculino. Mais, todos os tipos de manifestações são já vistos, pelas próprias mulheres como um exagero, uma afronta. Quase que é necessário voltar ao tempo em que a mulher deve ser recatada, e estar pacificamente no seu devido lugar, sem fazer muito barulho.

Numa das entradas mais cómicas, e, no entanto, tão verdadeiras, do livro, Anne descreve: “O sexo feminino é o órgão mais inteligente do corpo humano. É provavelmente isso o que mete medo. Basta pensar que nos filmes de Hollywood há muitos monstros que são vaginas. Predador, Alien, o deus dos Aracnídeos, o meu preferido continua a ser o Cérebro comedor de pensamentos de Soldados do Universo, uma vulva gigantesca ataviada com oito olhos. Penso num homem sozinho diante da folha de desenho, a moer a cabeça para imaginar o aspeto de um monstro aterrador, que, inconscientemente, esboça os contornos de uma vagina (…). Uma vagina pessoal! Há lá coisa mais aterradora do que uma vagina!”

Alien - Facehugger

Resta a questão, será que este medo, enraizado nos homens, talvez num complexo de Édipo, não estará igualmente presente em quase todas as mulheres? Uma memória no ADN desde a época de Eva e Adão, onde, claro, a maçã caiu nas mãos da Mulher, contaminando toda a futura Humanidade.

Mais a mais, não é mulher a principal culpada pelo seu desgoverno sexual? Se ainda hoje se escuta que, certamente, se colocam a jeito, como sair da espiral de eterna culpabilização pelos instintos mais básicos, carnais e humanos que existem?

TIZIANO, Vecellio di Gregorio (?-1576). Adão e Eva (1550). Museu Nacional del Prado, Espanha

Assim, “O Sexo das Mulheres”, desbrava vários territórios, entre os quais também se incluem filhos, maridos, companheiros, aventuras, desventuras, abuso sexual, abuso de poder, o que nos é transmitido de geração em geração. Mas não, não ensina o futuro, não o prevê sequer. Apenas reflete o resultado de, talvez, milénios de dúvidas e poucas respostas.



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