Dor, fé e devoção, para as massas - Cláudia Paiva Silva

Saturday, March 23, 2024

Dor, fé e devoção, para as massas

 


Arrancado aos pedaços, com boas doses de música ambiente dançante, numa discoteca privada apenas aos presentes. Precedido com uma introdução da australiana-fixada em Brighton, no sul de Inglaterra, Suzie Stapleton, mostrando, uma vez mais, o poder da guitarra no feminino. Cortinas para baixo, em escassos minutos de atraso. 

Para quem sempre se acostumou a estar sentada, confortavelmente, nos balcões laterais, vendo tudo por um canudo, ou tendo de ampliar ecrãs de telemóvel, aquelas 3 horas e meia em pé, bem mais perto do palco do que inicialmente tinha consciência, foram surpreendentes - e esta palavra não serve, nem justifica o sentimento. Desde o momento em que chego à fila, já de si longa para um "Golden Circle" que, afinal, era tudo menos isso, até que arredei pé do local onde me fixei, tudo me parece, ainda, ao dia de hoje, simplesmente, surreal. 

O M de Memento Mori, ou do que quisermos inventar nas nossas teorias da conspiração perversas, enche o palco, relativamente mais pequeno ao que certamente, costuma passar por outras cidades. Mais baixo, de acordo com a plateia multinacional, o que rareia a vista, nomeadamente quando os braços se elevam para gravar tudo o que acontece. 
Primeiros acordes, numa banda que, passados tantos anos, após um ALIVE que não era para ela, retorna a Portugal. E se me é permitido, que estava, honestamente, "receosa" do que poderia de nós receber.





Sendo que o jornalismo se quer isento, aviso que este texto, é um artigo de opinião. De isenção pouco terá. Sim, poderá ser um texto enviesado para muitos, mas quem esteve onde eu estive desta vez, e não nos tais balcões, onde, há quem diga, pouca emoção se fez sentir, entenderá que, apesar do cansaço físico, óbvio e visível, as vozes estiveram impecáveis, a força e energia de entrega também, pese os já tradicionais problemas de som de um "pavilhão atlântico" que nunca os conseguiu superar. Nem, alguma vez, irá.

O M estava com caveiras, vermelho. Óbvios registos do tema que deu início à noite incrível que Depeche Mode trouxe a Lisboa. E não, não revisito a lista de canções tocadas, simplesmente porque pouco me importou. Estava a vê-los e a "tê-los" a escassos metros. Tudo o resto deixa de ter importância, ou fazer grande sentido.

Pelo fim. Diz, quem foi, diz quem foi a todos os concertos da banda em Portugal (e uns tantos lá fora), que, a noite de 19 de março, só foi comparável com a Devotional Tour, quando a banda inglesa passou por Alvalade a 11 de julho de 1993. Não sei, mas tenho de acreditar. Só comecei a seguir o percurso, na altura, atribulado, a partir de 1997.

Mas "há dias", tudo estava perfeito. Tudo foi perfeito. Nomeadamente a energia do público. E como energia gera mais energia, o que se dá, recebe-se em troca a triplicar. E esse, foi o quebra gelo para uns senhores, que no auge da sua idade, experiência e respeito que lhes é devido, conseguem transformar a dor, em fé e devoção para uma massa humana, que encheu até ao máximo o espaço escolhido. Foi esse o momento em que o receio de entrar em diálogo, ainda que escasso, com a plateia, se dissipasse. A partir dessa altura, dar e receber, de lado a lado, foram totais.

Não posso refletir no que lhes passaria pela cabeça. Poderia entender que o físico, de todos os que lá estavam, já pesa (sim, nos meus 40 anos, não posso esperar sentir o corpinho como quando tinha os meus 23 anos). Mas posso garantir que a experiência foi orgásmica. Passo a explicar: aquele instante em que se atinge o êxtase, em que se chora, em que não sabemos em que terra estamos. Para mim foi assim, mas compreendi que para tantos outros, foi similar. 
Uma vez mais, é uma opinião pessoal. Não é coletiva. 

Desde a tímida homenagem a Fletcher, aquela criatura tão querida por todos, mas cujo desaparecimento fez crescer uma proximidade entre Martin e David, como há muito não se conhecia, nem via. Estaria ele presente? Certamente que sim. Fiquei no lado onde o "clapping hand man" costumava estar. Quem dera que ele lá continuasse, para dizer adeus a todos, volta e meia, e tocar num tecla apenas, outra meia volta depois. Mas a sua falta, acaba por ser uma resposta ao deus no qual Martin tanto acredita. Tornou os amigos coesos. As famílias mais próximas. Momento Mori - lembra-te que vais morrer. E daqui, não levas nada a não ser estes instantes. 

A emoção pode ter sido resultante, também, aos temas que mais me tocam, aqueles que mexem claramente com a minha psique, que me fizeram a mulher em que hoje me tornei, e que me garantem a sanidade em vários momentos. E, claro, a um trabalho de braços incrível e essencial para quem lá vai, e sabe AO QUE vai, e fica para os encores. Não há forma de explicar a sensação. Enquanto vejo Dave a obrigar-nos a um exercício físico que sabemos bem que temos de fazer, e me vejo, aliás, NOS vejo, a todos, à arena em uníssono de coros e braços levantados, não há hipótese. É um momento de sacramento, em perfeita sincronia, como quem vai à missa a comer o corpo de Cristo. É um momento de dor, é um momento de devoção. Pura precisão. 

Foram duas horas e 15 minutos em palco, mais tempo do que nos últimos concertos. Foram mais de 100 espetáculos até agora concretizados, desde o início da digressão. E acho que, qualquer um de nós, mesmo "mortos", ainda assim, bem vivos, de dores e cansaço, ficaríamos, à vontade para mais duas horas. Para mais uma vida inteira ao serviço dos mestres, tímidos nas conversas, proprietários na música.

A cara de David, bem no final do espetáculo disse tudo, segundos antes de sair, definitivamente, do palco. Quem esteve sabe também. E era pura alegria. Não há outra palavra que sirva. Até mesmo, digo, seria desnecessária. 

Agora? É apreciar o silêncio, com a alma cheia. 




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