K Galeria até 28 de Março - Cláudia Paiva Silva

Wednesday, March 04, 2009

K Galeria até 28 de Março

Mar Fêmea a espera é uma hipotermia. é um lugar da noite. é um calendário de marés, são contas nos dedos, um murmúrio, uma vigília que aguarda o alimento e a sua boca. a espera é uma terra inundada, sem fronteira. é um vento que nos toca e leva uma parte da nossa erosão.por vezes as ondas não regressam à costa. a maré cheia torna-se insuportavelmente gorda, sem fundo, devorando a fome e a coragem de quem parte e de quem cá fica esvaído como um parto de um nado-morto. nelson d´aires Nota: Mar Fêmea é um trabalho a ser apresentado em duas partes - uma na inauguração e outra no encerramento. a inauguração apresenta fotografias de uma espera e é contada através de símbolos que são metáforas. Durante esse tempo, vai ser criada e produzida na íntegra a matéria de conclusão cujas fotografias substituirão as anteriores. quem espera emergirá no final. Mar fêmea, exposição de fotografias de nelson d’aires. valter hugo mãe Quem vive de encontro ao mar conhece dois sentimentos mais fortes, o desejo de partir e o martírio de esperar. É porque alguém parte que outros aprendem a espera, e esta fica sobretudo do lado das mulheres, esses humanos mais parecidos às flores e capazes de fincarem os pés na areia como sondas emocionadas que perscrutam incansavelmente as águas. As mulheres conferem ao mar o seu atributo feminino, põem-se diante dele, e quantas vezes dentro dele (que na minha terra foi uma mulher quem se atirou à tempestade para salvar um náufrago que se via morrer a uns metros depois das ondas loucas), e elas organizam cada pormenor da vida a partir dali: entre os barcos e o peixe, a educação e a esperança difícil de envelhecerem todos juntos, seguros, como se cada um tivesse a certeza de que mais dia que passa é uma sorte. As fotografias de Nelson d’Aires percebem muito bem esta condição à tangente do trágico. Percebem muito bem o monstruoso tamanho do mar que, sempre deitando-se tão ao pé de nós, nos parece chamar. Há uma espiritualidade profunda que justifica a coragem com que as gentes entram na boca desse monstro para o conquistar tão efemeramente. Há uma festa fugaz e um folclore que vai perdurando, desde logo nos ritos religiosos, na convicção de que algo invisível existe para tomar conta de todos, mas que nunca afasta esse perigo de sempre e sempre temido. Porque esperar também é esperar pelo que não vem, até que o coração se convença de que chega a hora de voltar a casa e suportar a dor. As fotografias de Nelson d’Aires mostram o momento mais feminino do mar, esse ponto de espera em que ciclicamente o quotidiano de muitos se torna. Todos os dias a água devolverá quem foi, ou o atrasará para um medo crescente, ou não o devolverá de todo, para o desespero de quem fica vivo. É esse momento de sorte ou azar que se prepara nas imagens deste fotógrafo. Prepara-se a festa ou o funeral, e mostra-se a expectativa, um certo abandono ao que o acaso quiser decidir. Esta será uma sina antiga, e antigas parecem as suas imagens, com o granulado acentuado do preto e branco e com a essencialidade da narrativa que contêm. São imagens que crescem por intensificação, mais do que pela profusão de elementos ou referências. Estamos no domínio de uma forte subjectividade, no qual o olhar do fotógrafo se impõe decisivamente, propondo uma leitura através dos seus maneirismos como se nos obrigasse a atender àquilo em que realmente acredita, como só assim se pode fazer arte. Perante estas fotografias havemos de entender claramente a preferência pelo espiritual do mar, que leva ao efeito cabal da homenagem às gentes do mar, cheias de especificidades e dotadas de uma vida outra, de difícil expressão mas tão expressiva. O trabalho deste fotógrafo tem sido invariavelmente marcado pelo registo da espontaneidade das pessoas comuns quando vistas pelo seu lado invulgar ou excepcional. Nelson d’Aires tem feito colecção daquela mistura estranha da fantasia com a realidade – e a realidade é toda ela dotada de fantasia –, porque as mais das vezes fascina-se com captar a transfiguração assimilada pela sociedade, seja de modo voluntário ou não. Quero dizer com isto que o seu trabalho é reconhecido grandemente pelo fascínio pela transfiguração que advém de duas condições distintas; a voluntária, observada nas tradições, por exemplo, como as que acontecem em romarias ou festejos populares, invariavelmente marcadas por crenças religiosas, onde encontramos os populares recriando personagens que remontam à mitologia de todos; e a involuntária, observada quando uma força maior obriga a um reposicionamento perante todas as coisas, como a contingência de um fogo ou a fatalidade de uma profissão ligada aos humores do mar. Emtodas estas situações a vida está no limiar da mudança, como que comprometida com o incerto, reajustando-se, reafirmando-se sempre como perecível, vulnerável e mesmo ao dispor. Mar Fêmea é o trabalho da espiritualidade que acontece quando a arte verdadeiramente se compadece com os homens, ao invés de os manobrar para valores relativos e meramente estéticos. Mar Fêmea é a afirmação de uma atitude humilde de admiração e aprendizagem com quem sabe algo sobre o duro ofício de sobreviver. Parece-me que essa é a procura essencial de tudo quanto Nelson d’Aires fotografa, o esforço da sobrevivência, gerado numa natureza com muito de insondável, visível num quotidiano de inesperados e orações. Resulta, como podem ver, em algo excepcional.

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