Conhecendo-se a obra ainda curta de Tatiana Levy, reconhece-se também sua intensidade em descrever contextos, histórias e personagens. Escavacando cada pedaço do mais íntimo de cada personalidade que nos vai descrevendo, a cada livro verifica-se que existem momentos muito pessoais de dor, de trauma, de ansiedade, e quantas vezes o Mal se sobrepõe ao Bem. Relações quebradas, famílias que se amam e se separam, casos de violação ou violência, de auto mutilação, quase como se a dor autoinfligida fosse o caminho para a verdade, para o correto. Como se fosse uma forma de purga, atravessando a dor, chegaremos ao perdão.
Em Vista Chinesa, o tom não muda, mas a história deixa de ser apenas da cabeça da autora. É uma história resultante de um caso real. Uma violação, uma agressão a uma amiga de Tatiana, que acabará por passar a livro, um livro por vezes incómodo, outras vezes colocando-nos na dúvida do que afinal se espera que as vítimas (ou serão sobreviventes?) façam. Em alguns trechos é colocada a dúvida se a culpa não foi de Julia (a dona do corpo machucado), porque saiu noutro horário, porque mudou suas rotinas. E daí, será que não podemos usufruir de uma cidade ao nosso ritmo, à vontade de nossos impulsos? É, pode, e os impulsos dos outros? Os impulsos dos predadores mais animais que os animais em si, que se escondem atrás da mata, esperando as presas passarem, esperando o exato momento em que saltam, em que apontam a arma, em que ameaçam e arrastam o corpo dentro da floresta, do momento em que rasgam a roupa e abusam selvaticamente? É dessa gente que temos de nos precaver, desses impulsos - controle os seus e você ficará resguardada. Sim, mesmo que a cidade seja o Rio de Janeiro, mas poderia ser Lisboa, Tóquio, Nova Iorque, Berlim ou Londres ou qualquer outra. Não há cidades menos piedosas que outras, existem sim gentes sem alma, com instintos animais. Qualquer um de nós é capaz de matar, mas existe uma candura, um fundo em nós que nos separa dos outros, em normais circunstâncias.
O que sobra então? Julia, a personagem, vai escrevendo uma carta aos filhos ainda crianças. Estes filhos nasceram já depois do evento. Chamemos-lhe assim, "EVENTO". São fruto de amor, são fruto de tesão e de sexo, entre Julia e o marido, companheiro, que sempre esteve com ela ao longo de todo o processo. Julia sabe que não voltar a ser a mesma, apresenta medo que o trauma possa ter passado para a filha, te claro que tem um certo preconceito em relação ao seu corpo. Preconceito esse que vinha desde criança. Julia lutou muito para que seu corpo chegasse onde ela queria, Era o seu troféu. Era o seu presente a si mesma. Até que o corpo dela se transforma apenas num veículo que transporta uma alma, uma pessoa, uma vontade, um impulso, uma sensação animalesca, orgásmica de Vida. Esse corpo dilacerado durante o "EVENTO" não é mais o corpo que ela tanto adorava. É um corpo sujo, violentado, que não lhe pertence, embora ela sobreviva à violência.
Talvez não seja o corpo a ser quebrado. A alma é que é dilacerada por cada movimento, cheiro, toque, por fluidos corporais, por sabores, pela mata. A alma é o que cria o nosso trauma, a nossa psique o que nos traz todo o sofrimento. O corpo é só um veículo, um mero transporte de quem nós somos na realidade.
Quando chove no Rio, Julia acredita que com as águas tudo será levado, limpo e esquecido, como se a destruição ainda que parcial da cidade, (entenda-se do caminho que leva à Vista Chinesa), a lavasse também, a ajudasse a encontrar a paz que tanto procura e anseia. Ao mesmo tempo que Julia recupera, o Raio afunda nos seus próprios traumas, problemas e preconceitos.
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