December 2025 - Cláudia Paiva Silva

Sunday, December 07, 2025

... insondáveis personas
December 07, 20251 Comments


É difícil (para mim) largar um determinado tema ou assunto quando me toca, quando é bem exposto, melhor argumentado. 
E de repente, qual amálgama de coisas, temos várias sensações e lembranças e detalhes a serem colocados, novamente à luz dos nossos dias. Dos meus dias. Porque as histórias dos outros, em papel, acabam por se revelar as nossas experiências e memórias. Nem sempre bonitas. 
Terminei há dois dias o "Melhor Não Contar" (Elsinore) de Tatiana Salem Levy. Tal como já referido, um texto autobiográfico, cru e sensível, escrito de uma forma tão imensamente pessoal que revela o quanto de mágoa e dor existe por, 1º, ter sido vítima de assédio ao longo de toda uma pré-adolescência e durante a mesma, em pleno, 2º, por uma questão de respeito, de AMOR, nunca o ter revelado à mãe, e, pior, ter sempre sido aconselhada que era "melhor não contar".
E existem passagens, várias, que mexeram e mexerão com quem foi igualmente vítima de qualquer assédio ou abuso físico, psicológico ou sexual - principalmente se o leitor for uma mulher.
Ao longo das páginas existe uma pergunta que salta à vista: quantas vezes uma mulher se torna mulher ao longo da vida? Será da primeira vez que vemos o nosso corpo mudar? Será na menarca? Ou será quando sentimos, pela primeira vez, o olhar menos "próprio" de um homem (geralmente mais velho, geralmente com aquele aspeto e idade de ser nosso pai, tio, amigo dos nossos pais, da família). Será que é quando sentimos pela primeira vez algo semelhante com tesão e excitação? Ou será que é quando nos sentimos culpadas, envergonhadas por todas essas situações? Teremos certamente feito algo errado para que nos olhem dessa forma, para que nos toquem de certo jeito. Será a roupa que vestimos, antes de sequer termos 10 anos? Será que são os pequenos seios que começam a despontar? Será que é o ganho de consciência (no caso, de alerta) que as outras mulheres nos coloca em cima, exatamente para alertar que "tudo pode mudar" do nada?
Tenho quase 42 anos, e só no último ano e meio tenho ganho a coragem de partilhar com mais gente - homens e mulheres, mas sobretudo homens, que aos 8 anos um vizinho me susurrou coisas ao ouvido que escuto até ao dia de hoje. 
Tal como no livro de Tatiana se fala em detalhes (ela lembra TODOS OS DETALHES que precederam e procederam o assédio do padrasto), acho que todas (e todos) nós, vítimas de abuso, sabemos exatamente o que aconteceu antes, durante e depois - não é algo que se esconda na nossa mente (a não ser que o trauma seja brutal), e se sei que estava na farmácia X e que tinha uma saia vermelha de bombazine (aos 8 anos!!!) é porque os detalhes importam, acontecem e tornam tudo real. Tudo FOI real.
Depois, os anos passam e temos várias formas de lidar com o sucedido. Podemos repulsar, podemos levar a nossa vida de forma natural, ou o mais normal possível. Podemos partilhar, podemos contar.
E, sabendo que a maioria das pessoas prefere não saber, prefere não ser parte do trauma, da história, como se isso, de forma imbecil, aliás, os tornasse testemunhas de algo que não vivenciaram (e os homens têm um elevado narcisismo sobre isso - querem sonhar que são sempre os primeiros a nos desflorarem), quando nos exmpressamos levamos com a tal pergunta do: "para quê tanta exposição"? Porque é importante mostrar que podemos ser a pessoa mais "normal" do mundo e aos 8 anos de idade somos vítimas de palavras ao ouvido que sabemos que não estão corretas e sabemos disso. 
O instinto de sobrevivência alerta-nos sempre para quando algo está errado.
Tal como nos alerta para os diferentes equívocos ao longo da vida - e sim, porque temos todo o direito ao flirt, à brincadeira não-tão-inocente e que é tão saudável, mas que pode, claro, levar a outros subentendidos. Há que ter a sorte de termos homens, a sério, à nossa frente que entendem o nosso NÃO. Que o ouvem. Ou que o entendem também. 
Por isso, quando escuto pessoas a dizerem que quando chegam a casa a última coisa que querem ouvir ou debater, são os números de violações ou de violência doméstica ou contra as mulheres, eu apenas respondo: a maioria das mulheres apenas quer chegar a casa. 
E isto associa-se, estranhamente também à questão do que se quer para a vida, adulta. Hoje em dia, como escreveu Isabel Saldanha no seu blogue as relações já não são as mesmas que na época dos nossos pais ou avós - presos entre a expectativa e todas as burocracias associadas, um relacionamento torna-se moderno, e talvez não queiramos já as mesmas coisas. E dentro dessa modernidade impera, e ainda bem, a independência (feminina) que tantos temem. "Vais ficar para tia" "Quem vai tratar de ti no futuro" "Não sentes falta de ninguém" - falta de quê mesmo? Problemas, crises de ciúmes, ter a obrigação de estar sempre disponível, almoços de família (que muitas vezes nem gosta de nós?). Citando "Uns agarram-se à solidão como escolha. Outros agarram-se à relação como tábua de salvação" - e com isto cometendo erros sem precedentes -, "E muitos vagueiam no buffet das aplicações, onde ABUNDÂNCIA NÃO SIGNIFCA INTIMIDADE e onde DESLIZE NÃO SIGNIFICA DISPONIBILIDADE". 
E é isto - é exatamente ISTO - para uma Mulher, brincar, flirtar, "be one of the boys" poderá ter consequências inacreditáves, porque por muito que sejamos abertos, modernos, versão beta e zeta, a nossa génese e ADN continuam a ver o filme tradicional. Onde nos tornamos disponíveis e onde barreiras se diluem porque "deste a entender". Acreditem, quando queremos (todos nós) haverá sinais. E é importante saber ler qual é o limite. 
Mas não nos peçam para calar, para não partilhar, para não mostrarmos como somos, quais os nossos traumas, o que gostamos ou deixamos de gostar. Somos assim, eu SOU ASSIM. Como se diz "é aceitar". 

 

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