Queria escrever algo positivo. Algo que nos fizesse rir. Mas cada vez mais encerra-se em mim a incerteza dos dias, a constante ruga de preocupação que me tinha deixado há já uns tempos de incomodar. Atravessamos um período muito estranho na História e, narcisicamente, nas nossas vidas e pequenos hábitos. Perante factos não há argumentos. Tornámos-nos assassinos silenciosos, muitos de nós sabendo que o são, a maioria tendo-lhes sido passada esse desígnio por aqueles que continuam a insistir num mundo de conspiração, de números falsos, de doenças mais mortíferas. O que interessa o Covid quando o Cancro mata mais? É óbvio que mata mais. Não está em causa isso, mas sim a capacidade de cuidar de cada vez mais e mais pessoas que de uma hora para outra desenvolvem pneumonia aguda. Como não olhar para o caos que se tornaram hospitais e VER o que acontece nas morgues, onde nem médicos forenses nem agentes funerários conseguem travar a desorganização de corpos enfiados em sacos e ao monte. Corpos que nunca mais serão expostos para uma despedida. Gente que desapareceu sem perceber bem como, tal a rapidez. Às 13 entrou com falta de ar para o hospital, às 14.15 teve de ser intubado, às 15 já os pulmões estavam cheios de líquido. Às 15.20 morreu afogado sem que se pudesse fazer nada. Um minuto para respirar fundo debaixo dos fatos astronauticos e máscaras. Venha o próximo doente.
Cada um de nós poderá carregar uma arma assassina. O que vamos dizer aos nossos filhos pequenos daqui a uns anos? Que eles foram os responsáveis pela morte dos avós, dos tios? Que vamos dizer aos nossos filhos adolescentes que não foram, nunca foram, educados para obedecer, para ficar em casa, quando recuperarem da experiência quase-morte que passaram em meses de internamento hospitalar? Que a sua irresponsabilidade os levou àquele lugar? Ou iremos abraçá-los e agradecer o milagre por eles estarem vivos? Agradeçam aos médicos e enfermeiros exauridos de uma guerra que certamente nunca esperaram combater, fazendo a escolha entre salvar o jovem negacionista que esteve na festa invés de salvar um idoso, ou uma pessoa simplesmente mais velha, que nada fez para ser contagiado. Pelo menos não de forma direta. Esse foi o milagre. Escolher quem tem maiores probabilidade de sobreviver - maiores probabilidades. Esse é que é a porra do milagre!! Sendo que todos irão num futuro, mais ou menos longínquo, sofrer as sequelas de um filme de terror.
Não precisamos de ser cientistas para fazer um simples exercício - quanto mais pessoas forem parar aos hospitais, menos espaço haverá para as outras urgências. Quanto mais surtos ocorrerem em espaços clínicos, menor possibilidade de se realizarem consultas a outras especialidades também urgentes. Não quero acreditar que haja gente que pense que isto é apenas uma fantochada, não quero acreditar que haja gente que pense que os que estão a ficar doentes a um ritmo avassalador, não passem de atores medíocres de uma qualquer ópera buffa. Não quero acreditar que haja gente que ponha os seus lucros económicos e financeiros à frente da saúde dos trabalhadores que os deram a ganhar. Mas a verdade é que há gente assim, que não compreende os riscos e prefere continuamente culpabilizar o governo pelo desgoverno. É incrível como não vejo nenhum cidadão (ou vejo muito poucos ainda) a assumirem a sua quota de responsabilidade nos quase 15 mil casos diários de infeção. Vejo-os sim a acharem que como já não existe controlo, então porquê continuar a sonegar a "liberdade de movimentos" aos portugueses. Fazendo minhas as palavras da sueca: Como se atrevem?? Como se atrevem a achar que isto está tudo descontrolado, mas que é normal? Que tudo se não for normal, então é uma mentira intergovernamental pegada, que se não é uma mentira, é apenas uma forma de nos controlarem os passos? "Em mim ninguém manda ficar em casa! A mim ninguém manda usar máscara!"
Não consigo ver qualquer luz ao fundo túnel. Não vai ficar tudo bem. A vacina não é salvação. E estamos todos a revelar o nosso pior. Sendo que o nosso pior passa pela falha educacional de não aceitarmos regras simples que nos podem salvar a vida, e a revolta cada vez maior que cada um de nós, que, desculpem-me, mas NÃO QUER morrer, sente perante os outros. Meio mundo a lutar contra o outro meio. E não há forma disto parar.
Entendam isto e atentem nisto: a morte anda à espreita e todos nós a trazemos connosco. Nós somos a Morte.