April 29, 2015
BY Cláudia Paiva Silva 0
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Raras vezes temos a sorte de nos cruzamos com pessoas inteligentes que apresentam ideias interessantes. Raras também são as vezes em que essas ideias são inovadoras e não sejam uma espécie de repetição melhorada de algo que já se fez antes.
É o caso do projecto a Música Portuguesa a Gostar dela Própria (MPGDP). Pegando no conceito de recolhas musicais ao e no interior provinciano do nosso país, (feito iniciado por Michel Giacometti durante os anos 60), este projecto tem, ao longo dos quase últimos 10 anos, tentado promover não só a música que é feita em português de Portugal, como, maioritariamente, durante os últimos 5 anos, de uma forma mais coerente e "certinha", digamos assim, a música tradicional portuguesa. Sim, com os instrumentos tradicionais, os cordofones, os cavaquinhos, os adufes, as gaitas de foles, os cantares e cantes alentejanos, os pauliteiros lá de cima, as senhoras de ouro ao peito, tudo o que possam imaginar do que se espera de "tradicional".
Ora, como o próprio autor do projecto (Tiago Pereira) diz: o "tradicional" é a uma mentira. É um preconceito (ide ver o que pre-conceito significa ao google, aos livros, etc.) em cada um de nós. É a forma como queremos ver o que é típico de cada região - mesmo que mais não seja apenas do que uma imagem que nos queiram transmitir.
E há realmente um outro tipo de preconceito associado. Durante muitos anos o folclore português, o rancho, os grupos tradicionais eram vistos com algum desdém, como se fosse piroso falar ou escutar-se isso. Hoje simplesmente não é algo que gere dinheiro ou com que se ganhe audiências. Ninguém quer aparecer na televisão a participar num grupo folclórico; já com as pernas e mamas à mostra a cantar cantigas de conteúdo duvidoso... Mas presunção e água benta, cada um toma a que quer.
O que aqui interessa referir mesmo é que o trabalho que o Tiago e restante equipa (e são muito poucos mesmo!) não é fácil. Não é fácil saber lidar com egos de pseudo-artistas de aldeia que pensam que vão entrar num programa de televisão (e rádio) e ficar famosos, não é fácil lidar com idosos e idosas muitas vezes isolados no meio dos montes e vales de um país ao abandono infinito dos tempos, e ganhar-lhes uma confiança tal com a qual eles possam não só contar as histórias de Vida (e muitas vezes feias e más e ingratas) e cantar as suas canções. Não é fácil deixar-se para trás uma vida normal, a família e amigos para rapar frio, calor, chuva, sol, neve, humidade, currais, animais, grutas, pedras, serranias e conseguir desencantar sons que de outra forma seria praticamente impossível.
Não é fácil pegar nesses milhares de registos e conseguir montar um puzzle que se transforma em episódios de 20 e poucos minutos semanais. Horas e horas de gravações que farão parte da nossa memória colectiva Futura de um Passado que em breve vai deixar de existir. Porque igualmente não é fácil lidar com a desertificação do tal país ao abandono e com a morte das gentes de outra cepa e de outros tempos. Os nossos egrégios avós como diz "a cantiga".
E eu acho, pelo que vou lendo aqui e ali, que as pessoas pensam que isto tudo é muito fácil. Que se passeia imenso e que se trabalha pouco. Que a dificuldade de e em falar com as pessoas está apenas na nossa cabeça. O que não deixa de ser curioso, uma vez que às vezes para se dizer um Bom Dia num café da capital é um esforço tremedo que se aparenta fazer.
Eu tive a sorte em me ter cruzado com o Tiago. E de ele me ter re-apresentado algo que já estava há alguns anos adormecido em mim - o gosto pela música tradicional. Nunca tive problemas com ela, nem preconceitos. Muito pelo contrário. Mas com o passar do tempo e com mudanças no estilo de vida há coisas que foram ficando arrumadas nas suas respectivas gavetas. Felizmente este tema voltou a ser retomado.
Espero realmente que se saiba aproveitar este esforço que este grupo anda a fazer. Todas as imagens e sons que vão sendo recolhidos e, que saibamos nós também ir preservando alguma memória de "tradição" ou não tradição, que possamos ter. Gravar os nossos avós, gravar o amolador de facas, às vezes o barulho de uma viola de dois corações com o bater do Oceano nas rochas como pano de fundo.
Num Portugal de Torga, Brandão, Garrett, Pessoa, não é só pela nossa janela que vemos o mundo. Nós é que temos um Mundo e temos que o saber ainda guardar.