November 2024 - Cláudia Paiva Silva

Sunday, November 17, 2024

os dias banais
November 17, 20240 Comments

 




Ao ler Beatriz Serrano (Madrid, 1989) e o seu "O Desencanto", pauto por momentos de riso audível, ao mesmo tempo que vou sublinhando (algo quase raro em mim, mas que tem vindo a ganhar espaço) alguns parágrafos que batem em cheio com a realidade que atravesso.

A começar, "O Desencanto" é um livro contemporâneo, localizando a ação em Madrid, mas que poderia passar-se em Lisboa, Porto, Londres - qualquer uma dessas metrópoles europeias, desde que a personagem principal (nós mesmos) nos sentíssemos em uníssono: num enorme buraco negro na vida laboral, no qual os "highlights" passam pelo tempo entre a nossa casa e o escritório. Momentos durante os quais podemos alienar-nos, lendo, ouvindo música, fazendo algo que realmente nos agrade e quiçá, preencha mais, no que respeito diz a fazer-nos sentir úteis ou, simplesmente, felizes. 

Outros momentos que aligeiram o tormento: exposições, podendo trocar o Prado da história (não tão) ficcionada, por uma Gulbenkian ou Arte Antiga, palestras literárias, ver vitrines e montras. Como escreve a autora, não inteiramente por estas palavras, "coisas que não são feitas para o tamanho da nossa parca conta bancária, mas que nos preenchem a alma.

Seja como for, desde quando cheguei a este ponto? Qual terá sido o momento preciso em que me tornei igual, exatamente igual, a todo um grupo de pessoas, trabalhadoras, sim, mas com quem nunca me tinha (nem queria) identificar?

Podemos falar do cansaço de ter de lutar para pagar contas, as quais nem dois trabalhos (precários) conseguem colmatar, as constantes preocupações com saúde de familiares, verificar o estado lastimável para onde o mundo se vira - e saber que muitos rejubilam de felicidade em ver que estamos recuar décadas (talvez séculos) de evolução social. 

Mas a verdade é que sim, a vontade de atirar a toalha ao chão é brutal, num mundo onde parar não é opção, mas continuar a remar contra a maré, também não parece ser inteligente. 

De acordo com "O Desencanto" a personagem principal, publicitária por trabalho - não por profissão -, ensina-nos (a todos, independentemente do que façamos), como "sobreviver" a cada dia de labuta. Como consegue fazer de conta que faz muita coisa e apresentar trabalho, quando na verdade, apenas faz o que todos os outros fazem, copy-paste de ideias, apresentadas com outra roupagem, com outras palavras e voilá, feito. Isto, temos de admitir, SEM RECORRER a essa máquina maravilhosa que é o chatGTP - coisa medonha, mas que dá imenso jeito quando a inspiração parece não querer colaborar. Conto pelos dedos de 1 mão apenas as vezes que recorri à IA para me lançar umas duas frases que me dessem alento. Ainda assim, é uma ferramenta útil, caso a saibamos usar (bem!) em nosso proveito.

Ainda assim, garantidamente, algo diferente se apoderou da minha pessoa. Sinto que me aproximo mais (e não apenas por empatia) das pessoas que comigo andam nos transportes públicos, a tal classe social que é identificada como pobre (e, graças a uma comunicação social elitista, como perigosa ou criminosa), das mulheres que terão, certamente, nas suas cabeças muitíssimo mais do que afazeres profissionais, mas sim domésticos e familiares. 

E apesar da minha cabeça borbulhar de ideias, a minha capacidade de enquadramento e organização de pensamentos, acaba por estar anos-luz de distância de qualquer funcionalidade. 

Ou é por cansaço, ou porque a procrastinação não ajuda. 

A exemplo, demorei 4 dias a partilhar este texto, estando o primeiro parágrafo redigido num caderno. E entretanto, quantos temas terei debatido com conhecidos ou amigos, coisas sem qualquer suposta relevância ou, pelo contrário, com toda a importância que, para mim, apresentam? 


Os dias banais sucedem-se, pois é, em dias de, agora outono, que não se prolongam, bem pelo contrário, nem tão pouco repetem. A cadência, ou decadência, temporal é real, embora possam ajudar as temperaturas acima do normal, que neste fim de semana se fazem sentir. Mas a noite avança rapidamente, pedindo para recolhimento, e algum silêncio. Mesmo mental. 

Há quem possa também falar em depressão, melancolia, saudade, ou simplesmente, solidão. Mas sabem que agradeço o estar sozinha num mundo em ruído permanente, onde notícias são partilhadas e estilhaçadas no mesmo momento, dessecadas à verdade e à mentira perante as crenças de cada um de nós. 

Na verdade, e citando o livro que agora me passa pelas mãos e olhos, "A verdade é que não sei fazer nada em particular e não sei como é que cheguei até aqui. Desconfio que fui aperfeiçoando a brincadeira dos escritórios até que os outros começaram a acreditar que sou uma grande profissional". 

Errata - EU SEI QUE SOU uma grande profissional, mas sei que estou subaproveitada e a perder qualidades, se não me auto alimentar intelectual e cientificamente. 




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Saturday, November 02, 2024

As sopeiras do Marco Paulo
November 02, 20240 Comments

Marco Paulo morreu, VIVA Marco Paulo.

Goste-se ou não do estilo musical, das canções românticas, muito datadas de anos 80, com um quase nada, quase tudo de sotaque português a partir de uma versão brasileira, ou de arranjos a partir de originais espanhóis ou italianos, Marco Paulo foi um dos maiores ícones da música nacional.

Será impossível não se conhecer pelo menos um refrão do extenso repertório. Pelo que, a agora tendência de se interrogar "Quem?" sempre que algum artista (non-grato) desaparece deste plano, é, no caso, completamente abjeta.

Posto isto, os comentários após o seu falecimento, demonstram um profundo desconhecimento social, diria até musical, desconsiderando a enorme voz do artista. Contudo, o que mais choca foram as retóricas estabelecidas com base no típico preconceito, diria mesmo, machista. Sei que ninguém o é em Portugal (por quem sois), claro, mas quando se limita Marco Paulo a uma faixa social apenas feminina, e não raramente, pobre e iletrada, as "sopeiras" como Luís Osório tão bem recordou no seu elogio ao cantor, as "donas de casa", existe, sem dúvida uma agravante desnecessária. 

Tal como nas últimas semanas, muitos elementos da nossa elite, promoveram os suburbanos a gente pobre, sem acesso à educação, e, também, potencialmente perigosa, assim que Marco Paulo morreu, o espetro aumentou ainda mais. Afinal eu estava certa - somos mesmo quase analfabetos(as), que sonhavam alto enquanto cantarolavam as cantigas de amor, enquanto lavavam as roupas dos outros, as próprias, passavam a ferro, ou faziam as limpezas nas casas dos "senhores".

No livro "Na terra dos outros" de Manuel Abrantes, faz-se um retrato e relato, bem verdadeiro, sobre essas raparigas, que bem jovens, vieram na província, ao longo de décadas, para trabalhar nas casas das cidades maiores, muitas delas tornando-se alvos fáceis dos desejos dos patrões, dos "senhores", ou, talvez melhor infelicidade, das iras das patroas, as "senhoras", bem explanado pelos tabefes e outras agressões físicas. Por outro lado, basta relembrar também as principais vítimas das cheias de 1967, muitos e muitas, também eles, procurando uma vida melhor, longe da maior pobreza de onde tinham saído. 

Menosprezar estas gentes, que são hoje avós e pais, da geração "mais bem preparada de sempre" que Portugal tem, através do escárnio, e a partir de um cantor de música ligeira portuguesa, é menosprezar quem vota. Esses mesmos que, sendo iletrados, são os que conferem Poder a todos aqueles que os olham de alto, protegidos pelo seu privilégio, conferindo-lhes a adjetivação que bem conhecemos. 

Marco Paulo, por sua vez, apenas queria cantar para um publico que, realmente, lhe conferiu um epíteto de ídolo. Fossem mais mulheres e menos homens, aquele que nasceu no Alentejo, que tinha Amália como devoção, que adorava a mãe mais que tudo, que não recebeu, talvez, o carinho e apoio de um pai que o via "diferente". Marco Paulo, ou João Simão da Silva, de quem a vida privada pouco se conheceu, e a que se sabia, ainda alimentou algumas histórias e polémicas, como acontece com todos aqueles que chegam à primeira linha de fama real. Marco Paulo, aquele que, amado por milhares, detestado por alguns poucos, com feitio irascível que o "stardom" lhe conferia, e que ainda terá servido de inspiração a um Tony Silva de Herman José.

Aquele Marco Paulo, das sopeiras e donas de casa, de todos os jovens nascidos entre 70 e 80, e também inícios de 90, que o cantavam em karaokes e festas de aniversário nas garagens, a par de Prince, ou mais tarde Nirvana. O Marco Paulo do "sempre que brilha o sol", "eu tenho dois amores", "uma lady na mesa, uma louca na cama", aquele que será recordado por muitos mais anos do que qualquer um dos novos "grandes" nomes da música nacional. 

Aquele que representa, senão uma geração, toda uma classe social, de acordo com os entendidos da cultura portuguesa. Aquela gente que, na verdade, não sabe nada, de nada. 


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