October 2024 - Cláudia Paiva Silva

Thursday, October 24, 2024

Ninguém perguntou nada, mas a periferia não é um grande bairro social
October 24, 20240 Comments

Eu sei que ninguém me perguntou nada. E que a minha opinião valerá zero, embora habitante de uma antiga vila-tornada cidade dos arredores de Lisboa, desde há 40 anos. Ou seja, desde que nasci. 

Mas a verdade é que a periferia da capital não é um grande bairro social, tal como o Porto, caracterizado pelos seus bairros tão pitorescos e típicos, não pode ser identificado como uma cidade perigosa - pese os locais, até há uns tempos, completamente impossíveis de penetrar. A exemplo, o "Morro da Pena Ventosa" (o bairro da Sé), tão bem descrito por Rui Couceiro, no livro com o mesmo título.

Ainda assim, é com profundo espanto (e revolta!) que desde a pandemia, vejo, sempre que há "problemas", apelidarem-se as cidades dos arredores de Lisboa, que perfazem a grande área metropolitana da cidade, bairros sociais. Deixa de haver Benfica, Carnaxide, Alfragide, Queluz, Massamá, Cacém, até ao limite que a Serra de Sintra com os seus belos palacetes, impõe. 



Nos últimos dias, a Cova da Moura, bairro social problemático (sim!), torna-se a Amadora por inteiro. O Bairro do Zambujal (paredes meias com a Buraca e de onde tantos marchantes saem ultimamente para desfilar no 13 de junho na Avenida da Liberdade, na avenida das "lojas PARA ricos", -  também ele problemático, mas onde se localizam várias instituições estatais, como o Laboratório Nacional de Energia e Geologia, a Agência Portuguesa do Ambiente e quase quase, o Estado Maior das Força Aérea), torna-se apenas Alfragide. 

Já passado o estigma de "cidades dormitório", muitas delas que se desenvolveram com educação, cultura, comércio (não apenas o de vão de escada), veem-se, ou, "sentem-se", novamente, no olho do furacão. Quando se colocam todos os bairros, todas as pessoas no mesmo saco - porque para a maior parte dos comentadores políticos e não só somos apenas trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, do comércio a retalho, de cafés, e não licenciados, pós-graduados, doutorados, cujos preços das habitações atiram ou mantêm-nos nas mesmas localidades que nos viram crescer -, não há forma de voltar atrás. 

Quando, após 1974, as políticas de receber os imigrantes vindos das ex-colónias (falamos de negros e não de "retornados") falham a toda a ordem, esperamos o quê? Quando não existe integração, quando existe ostracismo, quando existe desconfiança, pobreza, construção de bairros ilegais, esperamos o quê? Quando as escolas não fazem o seu papel vigilante às crianças que sabem estar em "risco", quando não há - porque não se quer - empenho, quando os pais dos outros alunos os proíbem de brincar, de conviver com os colegas "pretos", estamos à espera do quê? Quando temos polícias cada vez mais jovens, muitos deles vindos também de bairros sociais, de famílias destruturadas e muitos vítimas de igual violência, com acesso a armas de fogo e com sangue quente na guelra, sendo colocados, exatamente, nas esquadras destes mesmos bairros, estamos à espera do quê? 

Mas o essencial seria começar a perceber, de forma mais definitiva, e sabendo que a comunicação social apresenta muita culpa nesta questão, não, os arredores não são um bairro social gigante, no qual, a partir de agora (e como vi ainda hoje na Rua Elias Garcia em Queluz), a polícia tem todo o "pequeno poder" de fazer o que quer, nomeadamente, a quem não paute pelo privilégio da cor branca da pele. 

Porque além de um problema social, enraizado ao final de 50 anos, temos um problema racial, que nunca foi apagado. Tal como há 600 anos atrás se achava que éramos donos de parte do mundo e das pessoas que nele habitavam, o mesmo aconteceu há 50 anos, quando tantos ainda achavam que os negros e negras eram propriedade, eram escravos, pese a abolição em Portugal (tardia) em 1869 "em espaço controlado pelo Império Português", tal como hoje, há quem jure a pés juntos que são todos para voltar à terra deles - exato. Porque temos muitas pessoas, brancas, que estejam com vontade de acartar sacos de cimento, vigas de betão, trabalhar nas limpezas, nas estufas, e a ganhar menos que o salário mínimo. Esperem. Sim, há quem ache que os portugueses de "bem", brancos, repito!, que vivem no tal bairro social gigante, dormitório, são todos pobrezinhos, sem habilitações literárias, e que podem fazer esses serviços. Podemos. Não me cairiam os parentes na lama. Mas não foi para isso que haja quem tenha feito sacrifícios para que eu estudasse, para que outras pessoas da minha geração estudassem. 

Não há porque generalizar, mas generaliza-se. E sim, tem de haver justiça, porque a descriminação existe também, demasiada até. E sim, a revolta vai num crescendo, e começa a ultrapassar as fronteiras e fossos dentro dos bairros sociais, passando para as cidades que os acolhem, entrando pelas casas de todos os quantos habitam nas cidades dormitório. 

E sim, é preciso cuidado, porque a paciência de uns não é a paciência de outros, porque a escala social vai-se desgastando e perdendo, porque nem todos podemos morar, como tanto tenho ouvido, em Campo de Ourique, ou no Parque das Nações, ou em condomínios fechados. Todos somos pessoas reais, todos pagamos impostos, podendo ser utilizadores de transportes públicos, cada vez mais insustentáveis e com uma péssima gestão, ou de veículos automóvel privados e individuais. Por isso não, não pensem que tudo é bairro social, porque o próprio conceito, se estivéssemos num mundo ideal, correto, justo, nem deveria existir, 

Pobres daqueles que vivem em unicórnios dourados e que não sabem NADA da vida além das suas bolhas de proteção. 


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Tuesday, October 08, 2024

Histórias, livros, distopias e outras realidades absurdas
October 08, 20240 Comments

Tenho este título guardado em formato rascunho desde julho. Na realidade nem me consigo lembrar da razão para tal nome, mas presumo que esteja relacionado com a quantidade de informação visual que me teria passado pelos olhos até então. De notícias de guerra, cenários de horror que, inicialmente justificáveis, ao final de 1 ano, de anos, não se podem já assim considerar. De livros, alguns que se revelam tão distópicos, mas que de tanta realidade são feitos. Designados de forma abjeta por romances, mas com aquela realidade poética, das que nos entram pela casa dentro, pela vivência dos dias. Gosto do realismo da vida - e mesmo que seja em forma de livro.

Ah, mas assim tu não vives! - Quem disse?

Contudo, é sério quererem mesmo que se viva este mundo em convulsão constante, qual vulcão sempre prestes a explodir em escoadas que não serão básicas, mas sim ácidas, com nuvens piroclásticas que nos deixarão, a todos, com os corpos fossilizados de Pompeia? 

Talvez a descrição seja exagerada - mas quando hoje, uma vez mais, se constata que o futuro da liberdade de expressão na comunicação social (e não apenas), poderá estar ameaçado, ou quando a escalada de notícias falsas começa a ser um ataque direto ao conhecimento científico, a sensação que tenho é de uma profunda regressão, um retrocesso à idade média. Só nos falta deixar de tomar banho para que seja praticamente idêntico.

Claro que muitos irão ler isto, alguns, já me o disseram, chamar-me-ão de preconceituosa ao ter uma ideia preconcebida dos preconceitos dos outros (lá está, a minha experiência é o que é, e como tal, é naquilo que valido a minha opinião e consideração dos demais), outros de "privilegiada branca, da esquerdalha radical". Confesso que esta expressão/adjetivo é algo que me deixa .... é isso, que me deixa. Porque embora, claramente, me aproxime de uma ideologia de liberdade, de manifestação de opinião, de inclusão social, radical não sou certamente - até porque radicalismos, expliquei em tempos num vídeo, tanto servem interesses de esquerda como direita. Não há diferença alguma entre a Venezuela e a China, ou a Rússia, ou a Argentina, ou o que virá a acontecer a vários países dentro da região europeia. 

Assim sendo, pergunto, continua a ser verdade que eu não viva? Não, esperem, eu não vivo é conforme o que os outros gostariam que eu vivesse - que fosse mais obediente, mais calada (ou menos histérica), que fosse mais caseira (e, preferencialmente com a vida "organizada" aka, casada e com filhos, porque aos 40 anos, já vou para um útero seco e encarquilhado). Mas infelizmente, para esses e essas, o corpo é meu, as escolhas, várias, são minhas também.

E por falar em escolhas, falemos em "tempos". Timings. Aqueles momentos em que poderíamos ou podemos, aproveitar, para fazer, para atuar, para falar, para estarmos calados. Aquele preciso segundo ou minuto, que podemos mudar (quase) tudo. Como no anúncio. Primeiro, saberemos identificá-los? Eu confesso que para coisas "banais" não me custa reconhecer, já para aquelas situações laborais, do "espera antes de falar, pensa antes de responder", definitivamente não. Ou melhor, finjo não saber. 

É tão desafiante como ser-se primeiro-ministro nos dias que correm. Ou tentar entender o que determinados partidos pretendem. Ou estar à espera de ficar desempregada porque existirão fusões e outras conjugações (reformulações, acabo de ver/escutar) numa área que ninguém compreende para que serve, ou gosta - energia e recursos geológicos, e como tal, vamos lá reduzir estas despesas extra, começando pelos recibos verdes, verdadeiros ou falsos, oops, estou a lamentar-me e não deveria. 

Uma mulher não chora, nem tem dor no parto, quanto mais queixar-se do mundo laboral. Errata: um jovem, um homem, uma mulher, uma jovem, não podem fazê-lo. Numa época em que a saúde mental é tão importante, pede-se cada vez mais, profissionais que, na verdade, tenham mais do que uma licenciatura, mestrado e doutoramento, que seja multifacetado. Sejam então aptos e tenham a possibilidade de trabalhar por 3, ganhando menos do que 1 ganharia. E estejam sempre disponíveis. S E M P R E! Mas uma mulher, não. Não somos tão feministas? Não temos então a força necessária para a resiliência e a capacidade de tratar de vários temas ao mesmo tempo? Sermos mães dos filhos das nossas sogras e mães dos filhos dos filhos das nossas sogras? Capacidade de trabalhar e sermos CEO's, ao mesmo tempo que fazemos as listas de supermercado e pensamos no jantar da noite e almoço para o dia seguinte? Capacidade de estarmos em reuniões, e receber mensagens a explicar como estão os nossos pais, que nos pedem igual atenção? E ainda nos queixamos? Não pode. E se fores a um médico? Uma ajuda psicológica? A sério que ainda tens tempo para ir falar ao divã? Sejas rapaz ou rapariga, com o peso óbvio que cada género atualmente acarreta - menino com o peso do macho alfa, o rapaz da família, aquele que dará continuação à espécie e ao apelido paterno, patriarcado enraizado e masculinidade tóxica, menina com o peso da fêmea frágil, a continuidade da espécie HUMANA (não tanto familiar), a que será mulher e mulher de alguém, antes que se corrija para o "esposa", a dona de casa, a MÃE. Os valores tradicionais rotulados num azul e num cor de rosa, que sim, continuam a ser usados. 

E lá vem a ladainha "woke". A da radical de esquerda, certamente amantizada com algum bloquista (ou alguma), aquela que merecia ser violada por um estrangeiro qualquer (isto ameaçado por portugueses brancos, adoradores do tempo em que as mulheres eram rainhas da cozinha, via rede social).

E sim, estamos, com isto, em realidades absurdas, onde as cidades vão perdendo os seus habitantes, sendo substituídos por turistas e nómadas digitais, onde o ódio que se vive atrás de écrans, mas também no dia a dia, a falta de paciência absoluta, de empatia, de respeito, de educação, de entendimento que à escala geopolítica algumas coisas não podem ser tidas como branco ou preto, muito menos quando (não se quer) conhecer a História. Realidade absurdas que poderiam parecer em tempos idos distopias, onde máquinas já fazem o trabalho de pensar pelos humanos, que não querem pegar em enciclopédias, em aprender, em acreditar no que já se esqueceram ter aprendido na escola, preferindo acreditar em meia dúzia de criaturas que acham saber mais do que os outros, quando nunca estudaram nada sobre os assuntos. Contra vacinas, contra tremores de terra, contra ciclones, contra escassez de água, contra incêndios, contra alterações climáticas .... contra a Natureza que um dia faz de conta que está contra a Humanidade. 








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